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Análise: Saída de pacto de migração prejudica reputação brasileira de acolhimento humanitário

Especialistas apontam que decisão anunciada por chanceler de Bolsonaro sinaliza que recepção a imigrantes se baseará em cálculos geopolíticos
O futuro chanceler Ernesto Araújo, na cerimônia de diplomação de Jair Bolsonaro como presidente da República em Brasília Foto: ADRIANO MACHADO / REUTERS
O futuro chanceler Ernesto Araújo, na cerimônia de diplomação de Jair Bolsonaro como presidente da República em Brasília Foto: ADRIANO MACHADO / REUTERS

A saída do Brasil do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular das Nações Unidas, anunciada na segunda-feira pelo futuro chanceler Ernesto Araújo, sinaliza uma guinada brusca na condução da política migratória do país e pode prejudicar a reputação brasileira nessa área, segundo analistas ouvidos pelo GLOBO.

— Há uma mensagem internacional que é dada, a de que direitos muito básicos deixam de ser compromisso e prioridade do país — diz a coordenadora de Programas da ONG Conectas Direitos Humanos, Camila Asano, que observa que a decisão vai contra a tradição brasileira na questão migratória. — Isso pode acabar destruindo um capital de reputação enorme, inclusive no que diz respeito à coerência.

O anúncio de Araújo foi feito horas depois de a participação brasileira no pacto ter sido confirmada durante a conferência que reuniu representantes de 164 países em Marrakech, no Marrocos. Em mensagens no Twitter, o futuro chanceler afirmou que o pacto é “inadequado” para lidar com o tema da migração, que deve ser abordado por cada país soberanamente, e não de forma global.

O acordo não tem natureza vinculante, isto é, não impõe obrigações legais aos Estados, mas destaca princípios como defesa dos direitos humanos, das crianças, reconhecimento da soberania nacional e enumera propostas para ajudar os países a enfrentar as migrações, como o intercâmbio de informação e de experiências ou a integração dos migrantes.

Segundo João Carlos Jarochinski, coordenador do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima, e que lida com a questão dos imigrantes venezuelanos no estado, a retirada do Brasil do acordo gera um “desgaste desnecessário”:

— O pacto não afeta a perspectiva soberana de escolha, que é definida por instrumentos nacionais. Não parece que, no médio prazo, o pacto possa gerar um acordo de natureza vinculativa — ele diz, acrescentando que seu principal efeito é enviar uma mensagem de proximidade com os EUA. — A primeira consequência é deixar clara para a comunidade internacional a política de alinhamento ao governo Trump — afirmou.

O pesquisador afirmou que a decisão também emite um sinal de que a política de recepção e acolhimento, vinculada à proteção dos direitos humanos e ao humanitarismo, deixa de ser prioritária, em detrimento de interesses geopolíticos. Isto significa, por exemplo, que a recepção de venezuelanos que fogem do regime de Nicolás Maduro se baseará em uma retórica de oposição ao regime:

— A posição por recepção e acolhimento fica menos vinculada a uma perspectiva de direitos humanos e de respeito à humanidade e mais baseada em uma perspectiva geopolítica de construir um discurso contrário à Venezuela — afirma.  — Isso significa que nossas próximas opções relacionadas à política migratória tendem a estabelecer articulações baseando-se mais em interesses geopolíticos do que em uma postura de defesa da conduta humanitária, que tem sido a tônica desde o segundo governo Fernando Henrique.

O pacto foi criticado por governos de direita e nacionalistas, sob a alegação de que põe em risco a soberania nacional. Chile, Estados Unidos, Austrália, Israel, Hungria, República Tcheca, Polônia, Eslováquia, Suíça, Bulgária, Bélgica, Itália, Letônia e República Dominicana renunciaram ao acordo ou expressaram reservas a ele.

De acordo com Carolina Moulin, professora da PUC Rio, a medida não deve interferir na Lei de Imigração nacional, aprovada no ano passado, de autoria do atual chanceler Aloysio Nunes. A natureza lenta do processo legislativo, ela diz, deve impossibilitar interferências imediatas:

— O governo eleito já deu indicações de que é contrário à lei, mas mudá-la exige um processo legislativo, e a gestação de uma lei federal é demorada — afirma. — Uma lei desse porte pode ter efeitos deletérios. O debate sobre a Lei de Migração durou 15 anos.

Moulin observa que atualmente “temos pouquíssima presença estrangeira no cômputo geral da população", o que enfraquece ainda mais o discurso de que o pacto gere ameaças à soberania. O ministro Aloysio Nunes mencionou ontem uma população de 1 milhão de residentes estrangeiros, ou 0,5% da população total.

O número de brasileiros morando fora do território nacional, por sua vez, é estimado em 3 milhões de pessoas. Com a saída do acordo, brasileiros fora do território nacional podem se ver expostos:

— Um dos princípios fundamentais das relações internacionais é o da reciprocidade — diz Moulin. — Na medida em que saída do pacto possa gerar restrições, outros países também se arrogam o direito de reproduzir essas restrições para brasileiros. Falo que sempre temos que ter uma política migratória de dupla face. Hoje o Brasil tem população no exterior bastante significativa. A decisão pode ter um efeito bumerangue com brasileiros.

Procurado para comentários, o grupo técnico responsável por fazer a transição do  Ministério das Relações Exteriores para o governo Bolsonaro não se manifestou.