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Analistas já veem 'golpe de Estado em formação' na recusa de Trump em aceitar derrota

Insistência do presidente dos EUA em repetir alegações de fraude sem comprovação nas eleições americanas ameaça provocar crise institucional em Washington; mesmo que golpe não se consuma, especialistas veem risco de o presidente minar confiança nas intituições
Apoiadores de Trump protestam em frente ao Capitólio do estado do Arizona em Phoenix Foto: JIM URQUHART / REUTERS/08-11-2020
Apoiadores de Trump protestam em frente ao Capitólio do estado do Arizona em Phoenix Foto: JIM URQUHART / REUTERS/08-11-2020

WASHINGTON — A insistência do presidente dos Estados Unidos em repetir alegações de fraude sem comprovação nas eleições americanas elevou a tensão política em Washington. Em ciclos eleitorais passados, a equipe de transição já começava a se reunir com o governo anterior e a compartilhar informações preparando o caminho para a nova gestão. Com a recusa de Donald Trump em aceitar a derrota para Joe Biden, a preocupação institucional cresce, e a palavra “golpe” passa a integrar o léxico de analistas que tentam entender o momento atual.

— Ainda não estamos em uma situação similar à de Venezuela ou Bolívia, mas as pessoas não estão levando os comentários de Trump a sério porque isso nunca aconteceu aqui antes. Do meu ponto de vista, é um golpe em formação — diz o professor de História da Universidade de Georgetown Erick Langer. — Quando você demite seu ministro da Defesa, tentando conseguir lealdade no Exército para seguir suas ordens, isso soaria alarmes na América Latina e em qualquer outro país se acontecesse, e deveria provocar a mesma reação aqui também.

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Na segunda-feira, primeiro dia útil de Joe Biden como presidente eleito, dia que escolheu para anunciar a equipe responsável por lidar com a pandemia do coronavírus a partir de 20 de janeiro, Trump tentou roubar os holofotes anunciando a demissão de seu secretário de Defesa, Mark Esper, pelo Twitter. Ontem, foi a vez do secretário de Estado, Mike Pompeo, chamar a atenção para si. Disse que haverá uma “transição suave” para um segundo mandato de Trump no país.

O professor da Universidade de Georgetown acredita que a expectativa é que as instituições sejam fortes o suficiente para impedir que um golpe aconteça, mas afirma que não é possível saber o desfecho.

— A pergunta aqui, como na América Latina no passado, é: os militares vão aceitar ir adiante com isso?

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Papel dos militares

A relutância do presidente e do Partido Republicano — apenas cinco senadores republicanos reconheceram o resultado até o momento— em aceitar o resultado das eleições trará perda de credibilidade moral para falar sobre democracia em outros países, acredita Langer. O professor também compara a atual situação do país com golpes militares do passado na América Latina.

— Só o fato de que, nos EUA, a mesma pergunta que se coloca é uma que se colocou no passado no Brasil, na Argentina, no Chile, na Bolívia, no Peru e em todos esses países, na África, e os militares serem o fator determinante para se teremos democracia ou não, isso é muito perigoso, porque eles não deveriam nem ser colocados nessa posição.

O professor da Universidade Harvard Steven Levitsky acredita que as Forças Armadas nos EUA não se prestariam a uma “aventura” como esta, mas diz que é impossível ter certeza, pois o país nunca esteve em situação similar.

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— Trump é um autoritário com personalidade altamente narcisista e ele não consegue admitir a derrota. Sabíamos disso desde o começo da campanha de 2016, e foi incrivelmente irresponsável e inconsequente da parte do partido político nomear um autoritário para uma posição dessas.

O autor do best-seller “Como as democracias morrem”, que também emprega a expressão “golpe de Estado” para se referir aos movimentos do Partido Republicano, argumenta que a popularidade de Trump com sua base faz com que, mesmo sabendo da derrota do presidente, políticos do partido não tenham coragem de dizer que Trump foi derrotado.

— Por covardia política e pessoal, eles estão permitindo que Trump continue com esse circo, mas isso não é real.

Danos permanentes

Levitsky acredita também que não há saída para a estratégia de Trump e dos republicanos que ficarem a seu lado, já que, em algum momento, terão que aceitar a derrota. Nesse meio tempo, no entanto, estão destruindo a legitimidade das instituições democráticas e eleitorais americanas, pois convencem a base de que houve fraude. Pesquisa do Politico/ Morning Consult desta semana mostrou que 70% dos republicanos não acreditam que as eleições foram justas e livres.

O grande e permanente dano causado pelos republicanos, diz Levitsky, é convencer a base de que houve fraude ao preferir o silêncio.

— A narrativa vai continuar. Republicanos podem aceitar. Alguns republicanos podem não aceitar. Mas no círculo próximo a Trump e seus apoiadores ferrenhos irão para o túmulo dizendo que a eleição foi roubada. Isso traz consequências terríveis para a opinião pública e para a cultura política.