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Ao marcar o fim da guerra no Afeganistão, Biden afirma que a era de 'refazer' outros países terminou

Presidente dos EUA declara que conflito deveria ter sido encerrado 'há muitos anos' e menciona China entre os novos desafios da diplomacia americana
Presidente dos EUA, Joe Biden, durante discurso marcando o fim da guerra no Afeganistão Foto: BRENDAN SMIALOWSKI / AFP
Presidente dos EUA, Joe Biden, durante discurso marcando o fim da guerra no Afeganistão Foto: BRENDAN SMIALOWSKI / AFP

No primeiro discurso depois do fim da retirada de todos os militares americanos do Afeganistão , o presidente Joe Biden defendeu sua decisão de encerrar o mais longo conflito da História dos Estados Unidos e afirmou que a era de "reconstrução" de outros países por Washington chegou ao fim.

— A decisão sobre o Afeganistão não diz respeito apenas ao Afeganistão. Trata-se de pôr fim a uma era de grandes operações militares para refazer outras nações — declarou Biden. — Quando concorria à Presidência, me comprometi com o fim dessa guerra e, hoje, cumpri essa promessa. Era hora de ser honesto com os americanos novamente, não havia mais um propósito claro na missão no Afeganistão.

O presidente disse que os EUA precisam se concentrar nos desafios do futuro, citando, entre outros, a competição com a China. Ele  lembrou que os objetivos centrais da invasão, atacar a rede terrorista al-Qaeda, responsável pelos ataques do 11 de Setembro de 2001 e que operava em território afegão, foram cumpridos "há mais de uma década", incluindo a morte do líder da organização, Osama bin Laden, em 2011, no Paquistão. Nos anos seguintes, o propósito da missão foi mudando e, em seus últimos estágios, concentrava-se em apoiar um Estado nacional nos moldes ocidentais. Para Biden, isso era, por si só, um reconhecimento de que não havia mais razão para manter as tropas no país .

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No discurso, o presidente voltou a defender sua decisão de manter a retirada das tropas mesmo com o avanço do Talibã. Ele declarou que as opções não eram nada fáceis, mas, depois de consultas com integrantes do governo, decidiu pela retirada.

—  Essa foi a escolha: entre a saída ou a escalada [militar]. Não estenderia essa guerra para sempre e não adiaria uma saída para sempre — afirmou o presidente.

Ele tambem voltou a criticar as forças de segurança afegãs, mencionando os bilhões de dólares investidos pelos EUA em equipamento e treinamento, e disse que elas não atenderam às expectativas de ao menos combater o Talibã de forma igual no campo de batalha.

Críticas a Trump

Sem mencionar seu nome, Biden fez críticas ao acordo fechado por seu antecessor, o republicano Donald Trump, e o Talibã em 2020. O pacto pavimentou o caminho para a retirada americana, mas não impôs obrigações claras à milícia fundamentalista, que desde então acumulou força e lançou a ofensiva que a levou novamente ao poder neste ano.

O acordo alcançado por Trump, disse Biden, autorizou "a libertação de 5 mil prisioneiros no ano passado, incluindo alguns dos principais comandantes de guerra do Talibã".

— Quando cheguei ao poder, o Talibã estava na sua posição militar mais forte desde 2001, controlando ou disputando metade do país — disse.

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O presidente voltou a elogiar a operação de retirada de pouco mais de 120 mil civis americanos e de outras nações, incluindo afegãos que trabalharam com as forças estrangeiras nas últimas duas décadas. Ele declarou que a missão foi um "grande sucesso" e defendeu a decisão de começar os voos apenas quando o Talibã estava na iminência de capturar Cabul. As imagens de caos no aeroporto da capital afegã deram munição para críticas vindas de adversários políticos e ajudaram a abalar seus índices de popularidade.

— Imaginem se as remoções tivessem começado em junho ou julho, trazendo milhares de soldados e mais de 120 mil pessoas no meio de uma guerra civil. Ainda haveria uma corrida ao aeroporto, uma quebra de confiança e de controle no então governo e, mesmo assim, seria uma missão difícil e perigosa — pontuou Biden. — O ponto é que não há uma retirada no fim de uma guerra que não apresente complexidades, desafios e ameaças como as que enfrentamos.

Olhar adiante

Biden usou parte de seu discurso para reiterar que a saída não significa um abandono dos afegãos. Ele seguiu a linha de não acreditar em promessas de moderação feitas pelo grupo e declarou que uma eventual relação vai se basear na percepção das ações daqui por diante. Biden reiterou que a defesa dos direitos humanos é pilar central da política externa americana, mas que essa defesa precisa ser feita por meio da diplomacia, e não mais de intervenções militares.

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Como vem fazendo em suas falas sobre política externa, o democrata mencionou que os EUA não podem mais lutar as guerras "do passado", mas sim trabalhar com os desafios de hoje.

— A obrigação fundamental de um presidente, em minha opinião, é defender e proteger os EUA não contra ameaças de 2001, mas contra as ameaças de 2021 e de amanhã. Esse é o princípio que guiou minhas decisões sobre o Afeganistão — afirmou, mencionando a China como uma competidora global e a Rússia, com quem os EUA mantêm uma relação pautada por adversidades. Por sinal, o presidente afirmou que o "melhor cenário" para as duas nações seria uma extensão da presença americana em solo afegão.

Voltando à motivação inicial da guerra, Biden garantiu que os EUA continuarão com ações contra o terrorismo, incluindo no Afeganistão, onde o grupo Estado Islâmico da Província de Khorasan (Isis-K) vem realizando violentos ataques nos últimos meses, incluindo uma ação que deixou 180 mortos no aeroporto de Cabul na semana passada. A diferença é que, em vez de operações grandiosas, seriam privilegiadas ações pequenas e com alvos definidos, o que poderia significar uma expansão do uso de drones , seguindo os passos de Barack Obama e Donald Trump.

— Para o Isis-K: nós não acabamos com vocês ainda — concluiu Biden.