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‘Aprendemos que é preciso respeitar referendos’, diz candidato de Evo Morales à Presidência

Ex-ministro da Economia e líder nas pesquisas de intenção de voto, Luis Arce afirma que governo interino foi incompetente na gestão da pandemia e que novo adiamento das eleições foi gota d’água para protestos atuais; ele cobra explicações do governo Bolsonaro sobre queda do ex-presidente
Ex-presidente Evo Morales (à direita) participa de entrevista coletiva ao lado do candidato do MAS à Presidência, Luis Arce Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP / 17-2-2020
Ex-presidente Evo Morales (à direita) participa de entrevista coletiva ao lado do candidato do MAS à Presidência, Luis Arce Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP / 17-2-2020

Responsável pela pasta da Economia em quase todos os 13 anos do governo de Evo Morales , quando a Bolívia teve um crescimento de em média 5% ao ano, Luis Arce lidera as pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais marcadas atualmente para 18 de outubro, depois de adiadas pela quarta vez.

Em entrevista exclusiva ao GLOBO, o economista de 56 anos lamentou que o país enfrente a pandemia quando, afirma, não há democracia.

Ele atacou o governo interino da senadora Jeanine Áñez pela gestão da Covid-19 — que até ontem contagiou 86 mil bolivianos e matou 3.465, pelos dados oficiais —, pediu esclarecimentos sobre a participação do Brasil na formação do governo interino após a queda de Morales e reconheceu que o ex-presidente errou ao disputar um quarto mandato, contra o resultado de um referendo em 2016 no qual a população do país rejeitou essa possibilidade.

Como o senhor avalia a gestão da crise sanitária pelo governo interino?

Temos que lamentar pelos bolivianos que, justamente em uma pandemia, não estamos vivendo em uma democracia. Temos um governo improvisado e que não cumpriu as expectativas. Foi declarada, ainda no mês de março, quando começou a pandemia, uma quarentena parcial e depois uma quarentena total. Esse governo não conseguiu durante todo esse tempo planejar uma resposta e comprar o que deveria para enfrentar o coronavírus. Não comprou respiradores e, quando comprou, foram superfaturados. Não instalou as UTIs necessárias para atender os doentes. Não comprou até agora o equipamento mínimo de biossegurança para médicos, enfermeiras, policiais e militares que estão nas ruas para garantir que as pessoas cumpram a quarentena. O governo também não fez a compra adequada de testes. Temos estatísticas que são mentirosas.

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E economicamente falando, a resposta foi adequada?

Quando começa a flexibilização da quarentena, porque a economia começa a ser uma pedra no sapato, o governo também não toma medidas adequadas em relação ao sistema social. Na Bolívia há uma enorme economia informal, ou seja, as pessoas ganham por dia de trabalho. Nesse sentido, a quarentena tem um efeito brutal na diminuição da renda. Nós do MAS (Movimento ao Socialismo, que tem maioria no Congresso) fizemos um documento apresentando nossas propostas de ajuda econômica, e ao final cederam. Mas os benefícios chegaram tarde demais. Houve um aumento da fome no país porque muitas pessoas não tinham o que comer sem trabalhar. Nos bairros populares nos ouviram e organizaram refeições comunitárias, o que mitigou o efeito das políticas sociais equivocadas deste governo.

Quais os efeitos na economia do país?

Em abril a Bolívia já tinha uma recessão de 5,6 %. Nunca havíamos chegado a níveis tão baixos, mas é uma queda esperada em razão do modelo neoliberal que retornou à Bolívia em novembro do ano passado. Já em 2019, o crescimento do último trimestre foi de apenas 1,1%, muito baixo dos bons números que havíamos feito nos primeiros meses do ano.. O país já vivia sérios problemas econômicos antes da pandemia, que terminou de afundar a economia boliviana.

Na semana passada o governo decidiu encerrar o ano letivo. Como o senhor analisa essa medida?

As aulas virtuais não deram resultado e o governo teve que reconhecer isso quando, há uma semana, a Bolívia encerrou o ano letivo, o único país da região a fazê-lo. Foi uma decisão contrária à posição da Federação de Trabalhadores da Educação. Isso se deve à incapacidade do governo de planejar uma metodologia para que os alunos possam ter aulas mesmo na pandemia. O povo boliviano está sofrendo uma má gestão da saúde, uma má administração da economia e da educação. Ainda tínhamos cinco meses de ano escolar pela frente, mas o governo tomou essa decisão, de maneira muito abrupta. Esse governo já nos mostrou sua inclinação contra a educação e a cultura, fechando o Ministério da Cultura há alguns meses.

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Os atuais bloqueios de rodovias por apoiadores do MAS podem prejudicar o partido na eleição?

Estamos acostumados a tudo ser culpa do MAS. Já nos culparam pelos atos de corrupção desse governo. Há muitas violações dos direitos humanos e da livre expressão no nosso país, e os poucos meios de comunicação que denunciaram os atos de corrupção foram perseguidos. O clima político está exacerbado. Estamos enclausurados há mais de 180 dias e não há resultado por causa da má gestão da saúde. Além de tudo, o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) , em total falta de seriedade, o que gerou desconfiança em toda a população, adiou as eleições pela quarta vez. A data máxima para a realização do pleito era 6 de setembro, e os partidos, incluindo o MAS, estavam de acordo com os adiamentos anteriores. Até que o TSE anunciou uma nova data, sem consultar os partidos, passando por cima da lei vigente. Isso foi a gota d’água. No fim, o que o governo quer é se manter governo o máximo que puder. Há ministros que já fazem propostas para 2021 e 2022, ou seja, já não é um governo de transição que só queria levar adiante as eleições como foi consenso político no fim do ano passado. Isso enfureceu o povo boliviano e as organizações sociais. O governo não resolve os problemas e a população está sentindo. Nos últimos oito meses, tivemos três ministros da Saúde. As pessoas arriscam suas vidas nos bloqueios porque sabem que elas já estão em risco por causa da má gestão da saúde.

Depois de ter sido muito criticada por seu relatório sobre as eleições do ano passado, a Organização de Estados Americanos (OEA) A estará participando dessa eleição como observadora internacional. Qual a credibilidade do organismo?

Para a população boliviana está claro que a OEA não é bem vinda. Não é um organismo que garante transparência ou eleições limpas. A OEA está totalmente politizada e ao lado da direita no meu país, não sei em outros. Aqui, isso ficou claro, com seus informes que já foram totalmente desbaratados por outros estudos, e catapultaram uma suposta fraude eleitoral, que não aconteceu como agora todos sabemos. Mas os outros organismos, como a União Europeia, ou a Fundação Carter, ou qualquer outra especializada, são bem vindos.

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O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a presidente interina. Como será a relação com o governo Bolsonaro se o MAS vencer?

Em novembro do ano passado houve uma reunião com aqueles que participaram do golpe de Estado, para determinar quem seria o presidente interino durante esse período supostamente de transição, que já dura nove meses. Na reunião, segundo Waldo Albarracín, então presidente do Conade (Comitê Nacional de Defesa da Democracia), uma organização contrária ao MAS, estava presente o embaixador brasileiro. Por isso dizemos que o senhor Bolsonaro deve ao povo boliviano uma explicação: por que a embaixada do Brasil estava na reunião onde se estava determinando quem seria presidente? Logo começaram a aparecer outras coisas, como a de um novo acordo entre a Petrobras e a petrolífera statal da Bolívia, a YPFB, que, do nosso ponto de vista, são concessões muito grandes que a Bolívia fez ao Brasil. Caso nos tornemos governo, vamos iniciar as relações com todos os países, mas primeiro é preciso que se respeite a soberania boliviana. Não temos problemas em conversar com governos de qualquer espectro político, desde que as negociação sejam benéficas para ambos os governos, e não apenas um.

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Evo Morales reconheceu que foi um erro se candidatar a uma nova reeleição. O que o MAS aprendeu com esse erro?

Entendemos que a candidatura a uma nova reeleição por parte de Evo estava no marco legal constitucional, mas reconhecemos que ela gerou no país uma linha política muito dura, que abriu espaço ao golpe de Estado de novembro. A lição aprendida é que é preciso respeitar o que digam os referendos e o que diga o povo boliviano, mas também esperamos que assim façam os partidos que vão estar na disputa eleitoral das próximas eleições, que até agora não sabemos quando serão.

Como reconquistar a classe média que apoiou Evo, depois articulou sua saída e agora está decepcionada com este governo?

O efeito econômico recessivo causado pela política neoliberal deste governo criou um enorme risco de que essa classe média volte a cair na pobreza. A tarefa que temos agora, após a pandemia, é a reconstrução da economia e a reativação desses setores, que precisam reagir. Isso vai gerar uma tranquilidade na classe média, que vai voltar a ter emprego e receita e vamos voltar a ser o país que fomos, durante seis anos consecutivos a primeira economia em taxa de crescimento na região. Contávamos com uma estabilidade econômica, social e política na Bolívia que foi desfeita. Precisamos reconstruir essa trilogia de estabilidade.