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Arquivos secretos da Venezuela revelam relação de braço direito de Maduro com o narcotráfico

Ex-vice-presidente do país, Tareck El Aissami teria facilitado entrada de membros do Hezbollah no país para formar rede de inteligência e comercialização de drogas
Ex-vice-presidente venezuelano Tareck El Aissami Foto: Wikimedia Commons
Ex-vice-presidente venezuelano Tareck El Aissami Foto: Wikimedia Commons

NOVA YORK — Ele é um dos líderes mais poderosos do governo venezuelano, um linha-dura que derrotou protestos, enfrentou rebeldes e foi uma presença constante ao lado de Nicolás Maduro, o autoritário presidente do país.

Mas durante anos, Tareck El Aissami, um dos confidentes mais próximos de Maduro, também tem sido alvo de amplas investigações da agência de Inteligência de seu próprio país sobre seus laços com o submundo do crime.

De acordo com um dossiê secreto compilado por agentes venezuelanos, El Aissami e sua família ajudaram a infiltrar militantes do Hezbollah no país, trabalharam com um traficante e protegeram 140 toneladas de produtos químicos que seriam usados para a produção de cocaína — o que o ajudou a se tornar um homem rico enquanto seu país caía em desordem.

Com a economia em frangalhos e as pessoas famintas, a Venezuela está no meio de uma luta desesperada pelo controle do país. Líderes da oposição pedem uma revolta, enquanto as autoridades militares e civis do país se recusam a entregar o poder, apresentando uma unida demonstração de força contra os protestos nas ruas.

Mas os documentos de Inteligência oferecem uma visão incomum de como os serviços de segurança do país se tornaram fragmentados e nervosos, particularmente devido à corrupção nos níveis mais altos do governo.

El Aissami, um ex-vice-presidente que agora é ministro da Indústria de Maduro, há muito tempo está na mira dos investigadores americanos. Ele foi indiciado em março em um tribunal federal de Manhattan e sancionado há dois anos pelo Departamento do Tesouro, acusado de trabalhar com chefes do narcotráfico.

Ele e Maduro ignoraram as acusações como parte de uma guerra de propaganda projetada pelo governo Trump para derrubar o governo esquerdista da Venezuela.

Mas a agência de Inteligência da Venezuela — que El Aissami já controlou — levantou ainda mais alarmes sobre ele e sua família por mais de uma década, colocando suas preocupações em um dossiê de documentos, descobertas investigativas e transcrições de entrevistas com traficantes de drogas.

O dossiê, entregue ao jornal New York Times por um ex-funcionário da Inteligência venezuelana e confirmado de forma independente por um segundo, apresenta depoimentos de informantes acusando El Aissami e seu pai de recrutar membros do Hezbollah para ajudar a expandir as redes de espionagem e tráfico de drogas na região.

O Hezbollah é considerado uma organização terrorista pelos Estados Unidos, e autoridades americanas dizem que o grupo há muito tempo tem presença na América do Sul, onde ajudou a lavar dinheiro de drogas. Em 2008, o Departamento do Tesouro sancionou um diplomata venezuelano, acusando-o de levantar dinheiro para o Hezbollah e de ajudar seus membros a viajar para o país.

Mas, segundo o dossiê, El Aissami e seu pai, Carlos Zaidan El Aissami, um imigrante sírio que trabalhou com o Hezbollah em visitas a seu país, também pressionaram para levar o Hezbollah à Venezuela.

Informantes disseram a agentes de Inteligência que o pai de El Aissami estava envolvido em um plano para treinar membros do Hezbollah na Venezuela, “com o objetivo de expandir as redes de Inteligência em toda a América Latina e ao mesmo tempo trabalhar no narcotráfico”, dizem os documentos.

El Aissami ajudou o plano, acrescenta o dossiê, ao usar sua autoridade sobre as autorizações de residência para emitir documentos oficiais aos militantes do Hezbollah, permitindo que permanecessem no país. Se o Hezbollah montou sua rede de Inteligência ou rotas de drogas na Venezuela não é abordado no dossiê. Mas o documento afirma que os militantes do Hezbollah se estabeleceram no país com a ajuda de El Aissami.

El Aissami também atuou como facilitador para o submundo de outras formas. Os documentos dizem que seu irmão, Feraz, negociou com o traficante mais famoso da Venezuela, Walid Makled, e detinha quase US$ 45 milhões em contas bancárias na Suíça. Ele também mantinha ligações com o traficante, dizem os documentos, observando que ele emitiu grandes contratos com o governo para uma empresa ligada a Makled.

E enquanto o país caminhava em direção ao colapso econômico, forçando milhões a fugir da Venezuela e de sua perigosa escassez de alimentos e remédios, El Aissami tornou-se um homem rico, diz o dossiê.

Usando um testa de ferro atualmente sob sanções dos Estados Unidos, El Aissami comprou um banco americano, partes de uma empresa de construção, uma participação em um shopping panamenho, terras para um resort de alto padrão e inúmeros projetos imobiliários venezuelanos, incluindo uma “mansão de milionário” para seus pais, de acordo com os documentos.

El Aissami não respondeu a um pedido para uma entrevista, e nenhuma acusação foi feita na Venezuela contra ele por tráfico de drogas ou corrupção. Mas em 8 de março, os Estados Unidos divulgaram sua acusação contra El Aissami, tornando-o o segundo membro do Gabinete de Maduro, conhecido por ser acusado de tráfico de drogas.

Néstor Reverol, atual ministro do Interior do país, também foi indiciado. E em 2017, dois sobrinhos da esposa de Maduro, Cilia Flores, foram sentenciados a 18 anos em uma prisão americana depois de tentar traficar 800 kg de cocaína.

O governo americano disse que El Aissami estava profundamente envolvido no comércio de narcóticos quando o sancionou em 2017, congelando seus ativos junto com os de Samark López, que foi acusado de ser seu líder. Os EUA disseram que El Aissami supervisionou ou transportou parte das remessas de narcóticos com mais de uma tonelada, gerenciou uma rede internacional de empresas para ajudar a lavar os lucros e forjou uma aliança com Makled, o traficante de drogas.

Mas os promotores americanos nunca revelaram as provas de suas investigações.

Os memorandos de Inteligência venezuelanos examinados pelo New York Times oferecem alguns dos detalhes mais concretos sobre como uma das famílias mais poderosas do país construiu seu império, revelando uma saga familiar que se estendeu da Síria à Venezuela, do narcotráfico ao círculo fechado do presidente.

Uma das trilhas levou a uma estrada solitária perto da fronteira da Venezuela com o Brasil.

Um oficial da Guarda Nacional entrevistado sobre uma batida policial de 2004 falou aos promotores sobre um conjunto de “armazéns que estavam em estado de decadência, parecendo abandonados”.

Mas o local não estava vazio. Estava sendo usado para armazenar produtos químicos, incluindo 140 toneladas de uréia, uma substância usada para a fabricação de cocaína, de acordo com os documentos da Inteligência venezuelana.

A uréia era uma substância controlada na Venezuela, e os proprietários não podiam inicialmente fornecer licenças para os produtos químicos suspeitos, disseram os documentos. Um investigador da polícia disse aos promotores que, embora a uréia supostamente devesse ser vendida como fertilizante, a explicação era suspeita porque não havia agricultura na região.

E então havia o dono dos produtos químicos: Makled, o traficante de drogas.

A apreensão foi o começo do fim para o traficante venezuelano, cuja extradição foi requisitada pelos Estados Unidos. A Drug Enforcement Administration (DEA, Órgão de Repressão às Drogas) começou a trabalhar contra ele por vender drogas com a ajuda de altos funcionários. Makled foi capturado seis anos depois e condenado em 2015 a uma sentença de 14 anos na Venezuela por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro.

Mas aparentemente esquecido foi o outro homem no centro do caso: Haisam Alaisami, outro parente de El Aissami, que disse aos promotores que ele era o representante legal da Makled Investments, empresa de Makled. Duas pessoas familiarizadas com a família identificaram-no como primo de El Aissami.

Ele não pôde oferecer informações sobre quem seriam os potenciais compradores da uréia, e os investigadores eventualmente encaminharam o caso à divisão de narcóticos da agência criminosa e forense da Venezuela por “suspeita de contrabando”, segundo documentos da polícia incluídos no dossiê de Inteligência.

Makled e Alaisami não responderam aos pedidos de comentários do New York Times.

Alaisami tinha em El Aissami um parente poderoso, que crescera com ele na Venezuela juntamente com outros membros do clã que haviam chegado da Síria.

Enquanto a investigação avançava através de agências estatais, a estrela de El Aissami cresceu nos círculos políticos esquerdistas. Ele deixou de ser um confidente do irmão do presidente Hugo Chávez, para se tornar um deputado do Partido Socialista, e ministro do Interior em 2008.

Foi naquele ano que uma empresa de propriedade da estatal petrolífera Petróleos de Venezuela, interveio: ela escreveu uma carta dizendo que poderia se responsabilizar pelos produtos químicos.

Nenhuma acusação foi feita contra Makled ou Alaisami no caso. Os documentos dos promotores parecem mostrar que a remessa de uréia foi devolvida a Makled, que ampliou seu negócio de narcotráfico na Venezuela e na Colômbia.

Outros ramos da família El Aissami também estavam procurando fazer negócios com Makled. Antes de 2010, ele foi abordado pelo irmão de El Aissami, Feraz, para fornecer uma grande quantia de dinheiro para uma empresa de importação baseada no Panamá, de acordo com um memorando de Inteligência no dossiê. O dinheiro do traficante era destinado à compra de um petroleiro a ser usado num contrato com a companhia estatal de petróleo.

Ambos os irmãos El Aissami parecem estar profundamente envolvidos no negócio, de acordo com o documento. Feraz e um parceiro de negócios eram os rostos públicos da empresa, enquanto Tareck, de seu cargo de ministro do Interior do país, assinou contratos lucrativos com o governo, incluindo um contrato sem licitação para fornecer suprimentos para o sistema prisional da Venezuela, segundo o relatório da Inteligência.

Uma terceira figura ligada ao negócio gerou mais suspeitas sobre a empresa de importação: o Sr. López, o homem que autoridades americanas disseram que ajudou a rede de tráfico de drogas de El Aissami e serviu como seu líder. O relatório de inteligência também inclui os extratos bancários de contas do HSBC vinculados a Feraz, que totalizaram quase US$ 45 milhões — dinheiro que eles dizem estar ligado a Makled.

O HSBC fechou as contas de Feraz depois que Makled foi preso por acusações de tráfico de drogas, segundo os documentos da Inteligência.

O dossiê termina com depoimentos de informantes sobre os laços da família com o Hezbollah, delineando o esforço para recrutar militantes que poderiam estabelecer uma rede de drogas e informações em toda a América Latina.

Uma das fontes de informação era Makled, que descreveu o envolvimento de El Aissami no esquema, de acordo com o memorando de Inteligência.

Não foi a única vez que El Aissami foi acusado de ajudar o Hezbollah e Makled. Autoridades americanas — e algumas venezuelanas — fizeram alegações semelhantes, embora El Aissami tenha negado envolvimento com grupos militantes no passado, mesmo depois de reportagens da mídia.

Mas as autoridades de Inteligência venezuelanas acreditavam ter provas do contrário. O dossiê termina com referências a fotografias de pessoas que “pertencem ao grupo terrorista acima mencionado”.