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Artigo: Black Lives Matter lança um grito para redefinir nossos tempos

Em anos de intensa atuação, movimento fez crítica profunda da desvalorização e do confinamento em guetos de vidas negras
Manifestantes erguem os punhos em uma manifestação do "Black Lives Matter" em Nova York na última sexta-feira Foto: ANGELA WEISS / AFP
Manifestantes erguem os punhos em uma manifestação do "Black Lives Matter" em Nova York na última sexta-feira Foto: ANGELA WEISS / AFP

Tal qual o catártico final do filme "Faça a Coisa Certa" (1989), de Spike Lee, foi em um dia quente de verão que os negros de Ferguson, no Missouri, se rebelaram após Michael Brown, um adolescente afro-americano desarmado de 18 anos, ser baleado e morto por Darren Wilson, um policial branco, na tarde de 9 de agosto de 2014.

Se o segundo mandato de Barack Obama dava a impressão de que os Estados Unidos poderiam caminhar, finalmente, para tempos pós-raciais, o corpo sem vida de Brown, exposto por longas quatro horas no local do crime, foi o estopim para manifestações que sacudiram o país pelos meses seguintes.

Como certa vez afirmou o reverendo Martin Luther King, “um motim é a linguagem dos que não são ouvidos”. De fato, não se tratava de algo exatamente novo: uma cidade americana profundamente segregada, um episódio letal de brutalidade dos agentes da lei, uma semana de raiva e intensos protestos — dirigidos contra a polícia e a segregação subjacente — e uma restauração militarizada da ordem.

Havia sido assim em Detroit, no verão de 1943, em Miami, em 1980, em Los Angeles, em 1992. Mas havia algo novo e dizia respeito à conectividade das redes sociais, por onde os protestos eram organizados.

Em julho de 2013, a ativista Alicia Garza postou uma mensagem simples no seu Facebook: “Pessoas negras. Eu as amo. Nossas vidas importam”. Sua amiga Patrisse Cullors, juntamente com Opal Tometi, viram a postagem e comentaram “#BlackLivesMatter” — "Vidas negras importam".

Seria no ano seguinte, com os grandes protestos iniciais de Ferguson e o não indiciamento do policial Darren Wilson, em novembro de 2014, que a hashtag tomaria as ruas e redefiniria o movimento negro contemporâneo nos Estados Unidos, ao romper com o forte teor heteropatriarcal e centrado em líderes carismáticos do ativismo antirracista, que terminava excluindo mulheres, transgêneros, queers e descapacitados.

Tratava-se, pois, de uma conversa muito mais ampla em torno da violência do Estado, que ia além das demandas por justiça diante do assassinato de pessoas negras (e a repetida impunidade dos acusados).

O Black Lives Matter se expandiu em escala global ancorado em uma profunda crítica sobre a forma com que as vidas negras eram desvalorizadas, confinadas em guetos com péssimas condições de educação, saúde e moradia. Sua demanda logo ganhou apoio de diversas celebridades e atletas negros, tendo também reconfigurado a própria cultura cinematográfica, ao reclamar da pouca representatividade negra nesses espaços.

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Sempre foi importante para suas fundadoras ressaltar formas de organização transversal e associar seu ativismo a toda uma tradição radical negra que, em face da violência advinda da escravidão, do linchamento, do estupro, do roubo e da separação de linhagens familiares, lutou pela liberdade.

A tenacidade de se enfrentar forças policiais ultramilitarizadas, que reutilizavam táticas e material bélico aplicados nas guerras do Iraque e Afeganistão para dispersar manifestações, dizia respeito à certeza de que tudo aquilo não poderia acontecer novamente.

O grito do Black Lives Matter acompanhou grandes protestos em Baltimore (2015), Baton Rouge (2016), Charlottesville (2017). Chegou à Europa e energizou o movimento #Fall na África do Sul. Aqui no Brasil, exigiu justiça quando Marielle Franco foi assassinada no Rio de Janeiro.

Passados mais de seis anos de existência, o Black Lives Matter ainda se mantém forte, mesmo sabendo que aqueles que mais precisam serem tocados por seu discurso não se importam com vidas negras perdidas.

A Covid-19, o novo coronavírus ainda sem cura, avançou nas comunidades negras dos EUA e se deparou com um vírus secular igualmente incurável: o racismo e as políticas do abandono do Estado. O vertiginoso avanço da doença expôs as históricas desigualdades sociais que fizeram dos afro-americanos proporcionalmente mais vulneráveis à pandemia.

Ao mesmo tempo, o paradoxo da hipervigilância dos negros socialmente invisíveis talvez explique por que em Nova York os negros cheguem a representar 93% das prisões relacionadas ao isolamento social do coronavírus.

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Esse quadro de repressão e desamparo foi intensificado com os brutais assassinatos de Breonna Taylor, morta em sua casa em Louisville, Kentucky, por policiais à procura de um homem que nem morava em seu prédio; Amaud Arbery, jovem negro de 25 anos, que estava fazendo exercícios ao ar livre quando foi perseguido por dois homens brancos armados no sul da Geórgia, sob a alegação de que suspeitaram de um roubo; e depois o caso de George Floyd, em Minneapolis, quando um policial pressionou o joelho em seu pescoço por quase nove minutos em que, ele preso ao chão e algemado, repetia (a exemplo de Eric Garner, morto em 2014) que não conseguia respirar.

Os vídeos em que um corpo negro agoniza diante de uma violência, como diria Orlando Patterson em “Escravidão e morte social”, gratuita e inimputável, levaram milhares de manifestantes a ocuparem as ruas de Minneapolis para protestar contra a morte de George Floyd. O presidente Donald Trump, retomando uma conhecida expressão do chefe de polícia de Miami Walter Headley, conhecido pela brutalidade contra comunidades negras nos anos 1960, ameaçou em um tuíte: “Quando o saque começa, os tiros começam”.

Se o resto do mundo anseia pelo desconfinamento e o retorno à normalidade, a multidão negra que toma as ruas em protesto, sem que o risco da pandemia tenha se dissipado, sabe que para essa normalidade é que não é possível retornar. Nestes instantes de perigo, o mínimo que lhes resta é sonhar com o quase impossível.

Nesse período de intensa atuação, o Black Lives Matter redefiniu não apenas o ativismo negro, mas a própria política americana. Jovens negros ocuparam as ruas quando todos imaginavam que aquilo era coisa do passado. Ainda que uma grande parte da cobertura televisiva oficial e a linguagem daqueles que repreendem os protestos esteja centrada em se referir aos manifestantes como “saqueadores”, “bandidos” e “antiamericanos”, está em jogo algo muito maior: prantear vidas tidas como descartáveis e enfatizar que elas importam.

A historiadora afro-americana Saidiya Hartman foi precisa quando disse que, para enfrentarmos nossa responsabilidade para com os mortos, é preciso não apenas recordá-los, mas também “estabelecer uma promessa de abjurar a injustiça que permitiu que esses crimes ocorressem”.

O que está em disputa não é apenas um acerto de contas com o passado, mas a realização dos sonhos de todos os negros que ousaram mostrar a incompletude da propalada liberdade americana.

*Allan Kardec Pereira faz doutorado em História na UFRGS, com tese sobre o Black Lives Matter

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