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Bode expiatório de Trump, OMS alertou sobre o coronavírus de forma rápida

Ainda que tenha cometido erros, Organização Mundial da Saúde agiu com mais contundência do que muitos governos nacionais; apesar disso, EUA decidiram suspender suas contribuições
Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, participa de entrevista coletiva sobre a Covid-19 em Genebra Foto: FABRICE COFFRINI / AFP/28-02-2020
Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, participa de entrevista coletiva sobre a Covid-19 em Genebra Foto: FABRICE COFFRINI / AFP/28-02-2020

GENEBRA — Em 22 de janeiro, dois dias depois de as autoridades chinesas reconhecerem a grave ameaça representada pelo novo coronavírus que estava assolando a cidade de Wuhan , o chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS) realizou o primeiro pronunciamento para a imprensa dos muitos que aconteceriam quase diariamente nos próximos meses, fazendo soar o alarme ao dizer para o mundo levar o surto a sério.

Porém, com seus funcionários divididos e ainda sem provas  de propagação sustentada do vírus fora da China, a OMS recusou-se no dia seguinte a declarar uma emergência global de saúde pública. Uma semana depois, a organização voltou atrás e fez a declaração.

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Os primeiros dias da epidemia ilustraram os pontos fortes e fracos da OMS, um braço das Nações Unidas que está agora sob fogo do presidente americano, Donald Trump, que na terça-feira ordenou a suspensão de contribuições dos EUA à organização .

Com informações limitadas e em constante mudança, a OMS demonstrou uma determinação precoce para tratar a nova doença como a ameaça que se tornaria e convencer outros a fazerem o mesmo.

Ao mesmo tempo, a organização elogiou repetidamente a China, mas agindo e falando com cautela política, já que se trata de um organismo com poucos recursos próprios, incapaz de realizar seu trabalho sem cooperação internacional.

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Trump, evitando as críticas de que sua própria gestão da crise deixou os Estados Unidos despreparados, acusou a OMS de administrá-la mal e chamou a organização de "muito centrada na China", além de ter dito que ela "empurrou a desinformação da China" para o resto do mundo.

Mas um exame mais atento da situação mostra que a OMS agiu com capacidade de previsão e velocidade maior do que muitos governos nacionais e mais do que havia mostrado em epidemias anteriores. E, embora tenha cometido erros, há poucas evidências de que seja responsável pelos desastres que ocorreram na Europa e nos Estados Unidos.

A OMS precisa do apoio de seus membros internacionais para realizar qualquer coisa — ela não tem autoridade sobre nenhum território, não pode ir a lugar nenhum sem ser convidada e depende dos países-membros para seu financiamento. Tudo o que pode oferecer é conhecimento técnico e coordenação — sendo a maior parte emprestada de instituições de caridade e Estados-membro.

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Em 11 de janeiro, cientistas chineses publicaram a sequência de DNA do vírus, e a OMS pediu a uma equipe em Berlim que usasse essa informação para desenvolver um exame de diagnóstico. Apenas quatro dias depois, eles produziram um teste e a organização publicou on-line um plano que qualquer laboratório ao redor do mundo poderia usar para replicá-lo. Em 21 de janeiro, a China compartilhou materiais do seu teste com a OMS, fornecendo outro modelo para ser usado.

Alguns países e instituições de pesquisa seguiram o plano alemão, enquanto outros, como o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, insistiram em produzir seus próprios testes. Mas uma falha no teste inicial do CDC e a lentidão da agência em aprovar testes em laboratórios que não os seus próprios contribuíram para semanas de atraso na testagem nos Estados Unidos.

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No final de janeiro, Trump elogiou os esforços da China. Agora, porém, autoridades de seu governo acusam o país de ocultar a extensão da epidemia e a OMS de ser cúmplice do engano. Eles dizem que a organização fez com que o Ocidente levasse o vírus menos a sério do que deveria.

Larry Gostin, diretor do Centro de Direito Global da Saúde da OMS, disse que a organização confiou demais nas afirmações iniciais de Wuhan de que havia pouca ou nenhuma transmissão humana do vírus.

— A maneira complacente de analisar isso é que a OMS simplesmente não tinha meios de verificar o que estava acontecendo — disse. — A maneira intransigente de ver isso é dizer que a OMS não fez o suficiente para verificar de forma independente o que a China estava dizendo e comprou o discurso chinês.

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Em 31 de janeiro — um dia após a declaração de emergência da OMS — Trump passou a restringir as viagens da China, e desde então se vangloria de ter agido antes de outros chefes de Estado, o que foi crucial para proteger os Estados Unidos. De fato, as companhias aéreas já haviam cancelado a grande maioria dos voos provenientes do gigante asiático, e outros países interromperam as viagens da China na mesma época em que Trump o fez.

O primeiro caso da doença nos Estados Unidos foi confirmado em 20 de janeiro, depois que um homem infectado, mas sem sintomas, viajara cinco dias antes de Wuhan para Seattle, onde ocorreria o primeiro surto americano grave.

A OMS afirmou repetidamente que não apoiava as proibições internacionais de viagens, consideradas ineficazes e que poderiam causar sérios danos econômicos, mas não criticou especificamente os Estados Unidos, a China ou outros países que deram esse passo.

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Especialistas dizem que foram as restrições internas de viagem da China — mais severas que as do Ocidente — que tiveram o maior efeito, adiando a propagação da epidemia por semanas. Mais tarde, a OMS também admitiu que a China havia feito a coisa certa. Por mais brutais que fossem, as táticas do país aparentemente funcionaram — algumas cidades foram autorizadas a reabrir em março, e Wuhan o fez em 8 de abril.

O governo Trump, porém, não esteve sozinho ao criticar a OMS. Alguns especialistas em saúde pública e funcionários de outros países, incluindo o ministro das Finanças do Japão, também disseram que a organização agia com maior deferência à China.

A organização foi criticada por não chamar inicialmente o contágio de pandemia. O termo não tem significado oficial dentro da OMS, e as autoridades insistiram que o uso não mudaria nada, mas Adhanom começou a fazê-lo em 11 de março, explicando que a mudança servia para chamar a atenção, porque muitos países não estavam levando a sério os avisos.