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Bogotá começa quarentena por gênero: homem vai à rua em um dia, mulher, no outro

População da maior cidade colombiana respeita decreto, apesar das fortes críticas da comunidade trans
Homem caminha no primeiro dia de medidas de confinamento por gênero em Bogotá por causa do coronavírus Foto: Leticia Fernandes
Homem caminha no primeiro dia de medidas de confinamento por gênero em Bogotá por causa do coronavírus Foto: Leticia Fernandes

BOGOTÁ — Na manhã desta segunda-feira, 13 de abril, as ruas na região norte de Bogotá, área mais rica da capital da Colômbia , estavam praticamente vazias. Apenas alguns carros e bicicletas de entregas em domicílio, ocupados em sua maioria por homens, circulavam. Os supermercados também estavam sem filas, com alguns poucos clientes do gênero masculino fazendo compras.

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Para tentar conter o avanço da curva de contágio do novo coronavírus — já são 2.776 casos e 109 mortes em todo o país —, a prefeita de Bogotá, Claudia López, determinou um revezamento obrigatório por gênero na cidade, que passou a valer hoje. Segundo o decreto, nos dias ímpares, homens podem sair às ruas; nos dias pares, mulheres. Pessoas transgênero devem seguir a determinação de acordo com o gênero com o qual se identificam. Nas cerca de duas horas em que O GLOBO andou pelas ruas de Bogotá, o que se viu é que a população da maior cidade do país está respeitando o decreto, apesar das fortes críticas da comunidade trans, que argumenta que a decisão é discriminatória e aumenta a chance de violência policial.

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Com a medida, já adotada no Panamá e no Peru , o governo de Bogotá espera diminuir em 35% a circulação de pessoas durante a quarentena nacional decretada no país até 27 de abril, especialmente em locais como supermercados, parques e bancos, onde, segundo a prefeita, ainda havia aglomerações significativas. Quem não respeitar o revezamento está sujeito a pagamento de multa de cerca de R$ 1.200.

No primeiro dia do revezamento obrigatório, alguns policiais ainda pediam para verificar documentos de transeuntes, o que a prefeita desaconselhou por causa do risco à saúde dos bogotanos. Mas, em sua maioria, mulheres que andavam pelas ruas trabalham em serviços considerados essenciais ou tinham justificativa de empresas para estarem fora de casa.

A enfermeira Mercedez Caicedo, de 50 anos, estava na rua para comprar remédios e comida para três de seus pacientes, com idades entre 85 e 90 anos. Ela afirmou não ter medo de sair porque sabe que está ajudando outras pessoas:

— Não me sinto em perigo de estar na rua, considero que estou fazendo um trabalho social. Melhor eu sair do que eles, que são tão velhinhos e não podem se cuidar sozinhos.

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A auxiliar de supermercado Carolina Hernández, de 20 anos, que pedala 45 minutos todos os dias para chegar ao trabalho, disse que sentiu diferença em seu caminho, onde praticamente só esbarrou com homens:

— Hoje senti muita diferença. Nas ciclovias por onde passei só vi homens pedalando — afirmou Hernández, que contou que no mercado onde trabalha está proibida a entrada de mulheres em dias ímpares, e de homens em dias pares: — Nos dias dos homens, não estamos deixando entrar mulheres e vice e versa. Se a pessoa chega na porta e não pode entrar, a gente oferece de ela pedir por telefone e a gente entregar as compras em casa, mas entrar está proibido.

O venezuelano Adelves José, de 35 anos, caminhava por um parque com seu cachorro e pedia ajuda financeira dos que passavam. Ele mora há 1 ano em Bogotá, fugido da crise em seu país, e trabalhava como entregador em domicílio, mas teve sua bicicleta roubada há alguns dias e não tem como se sustentar. Precisa de 25 mil pesos diários (cerca de R$ 33) para pagar o aluguel do quarto onde mora com a mulher e o filho pequeno no Sul da cidade, região mais pobre de Bogotá.

— Com o coronavírus, tenho amigos que já estão caminhando há mais de uma semana de volta para a Venezuela, mas eu decidi ficar aqui. Como estou sem trabalho, mesmo com esse revezamento vou precisar sair todos os dias, porque tenho aluguel para pagar, tenho fome — disse José.

Apesar do respeito às regras, integrantes da comunidade trans confessam estar com medo de sair nas ruas por temer violência policial. As críticas à decisão vêm especialmente de pessoas que ainda não alteraram seus documentos ou de trans não binárias, ou seja, que não se identificam nem com o gênero masculino nem com o feminino.

Carli Castillo Rivera, de 29 anos, é uma pessoa trans não binária e disse ao GLOBO que a determinação da prefeita de Bogotá, que é assumidamente homossexual, é no mínimo "inocente" e "absolutamente discriminatória":

— O decreto parte de uma noção binária normativa que define modelos de ser homem ou mulher, modelos esses em que muitas pessoas trans não se encaixam, e também anula a existência dessas pessoas, condenando-as a uma espécie de não-lugar — explica Rivera, que diz não confiar na polícia para garantir sua integridade física: — A prefeita está sendo muito inocente ao pensar que toda a força policial da cidade vai ter a consciência do que é uma pessoa não-binária ou intergênero. É uma pena que ela tenha reforçado essas normas binárias, em especial vindo de uma mulher lésbica.

Diante da polêmica, a prefeita determinou nesta segunda-feira que os não-binários poderiam escolher um dia para sair.