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Bolsas para cadáveres e listas de inimigos: por dentro dos planos da extrema direita alemã para o 'Dia X'

Investigados pela polícia, grupos de radicais planejavam ataques contra inimigos e davam como certo o desmoronamento da sociedade alemã; apesar das evidências, poucos foram processados
Loja de equipamentos militares em Scwherin, na Alemanha, mantida por um integrante do Nordkreuz Foto: GORDON WELTERS / NYT
Loja de equipamentos militares em Scwherin, na Alemanha, mantida por um integrante do Nordkreuz Foto: GORDON WELTERS / NYT

GÜSTROW, Alemanha — O plano parecia assustadoramente real. O grupo iria capturar inimigos políticos e todos que defendiam imigrantes e refugiados, colocá-los em caminhões e dirigir para um local secreto. Depois, todos seriam mortos.

Um integrante do grupo havia comprado 30 sacos para cadáveres, e outros mais seriam encomendados, de acordo com os investigadores, além de óxido de cálcio, usado para decompor material orgânico.

Em princípio, aqueles que discutiam o plano pareciam ter alguma reputação. Um era advogado e político local, com especial ódio por imigrantes. Dois eram reservistas do Exército. Dois outros, policiais, incluindo Marko Gross, um atirador de elite da polícia e ex-paraquedista, que atuava como líder informal.

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Esse grupo nasceu em uma rede usada por soldados e pessoas que viam com simpatia a extrema direita, criada por um integrante da força de elite militar da Alemanha, a KSK. Com o tempo, sob supervisão de Gross, criaram um grupo paralelo. Os integrantes incluíam um médico, um decorador, um dono de academia e um pescador.

Eles se autointitulavam “Nordkreuz”, ou “Cruz do Norte”.

— Entre nós, éramos uma comunidade — afirmou Gross, um dos vários integrantes da Nordkreuz que descreveu, em uma série de entrevistas ao longo deste ano, como o grupo se juntou e começou a fazer planos.

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Eles negam terem planejado matar alguém. Mas investigadores e promotores, assim como um relato à polícia por um integrante do grupo, indicam que eles planejavam ações um pouco mais sinistras.

Marko Gross, espécie de líder informal do Nordkreuz, em maio de 2020 Foto: GORDON WELTERS / NYT
Marko Gross, espécie de líder informal do Nordkreuz, em maio de 2020 Foto: GORDON WELTERS / NYT

A Alemanha começou a lidar de forma dura com as redes de extrema direita que autoridades dizem ser bem mais extensas do que se imaginava. Seu alcance nas Forças Armadas é alarmante , ainda mais em um país que trabalhou para se limpar de seu passado nazista.

Mas o caso da Nordkreuz, que apenas recentemente foi a julgamento depois de ter sido descoberto há mais de três anos, mostra que o problema da extrema direita não é novo, tampouco restrito à KSK ou às Forças Armadas. O extremismo de direita penetrou em muitas camadas da sociedade alemã, em um período em que as autoridades subestimaram a ameaça ou relutavam em agir diretamente contra ela, como reconhecem autoridades do governo e parlamentares. Agora, estão tendo dificuldades para acabar com ela.

Absurdo 'real'

Uma motivação central e comum aos extremistas sempre pareceu tão absurda e fantasiosa que, por muito tempo, as autoridades e investigadores não pareciam levá-la a sério, mesmo com as evidências de que estava ganhando relevância em grupos da extrema direita. Neonazistas e demais extremistas a chamavam de “Dia X” — um momento mítico em que a ordem social da Alemanha desmoronaria, demandando dos extremistas de direita, segundo sua narrativa, um esforço de autopreservação e de salvação nacional.

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Hoje, os defensores do “Dia X” atraem pessoas sérias, com habilidades e ambições concretas. Cada vez mais, as autoridades alemãs consideram esse cenário um pretexto para atos de terrorismo interno por conspiradores ou mesmo para uma tentiva de tomar o governo.

— Temo que só tenhamos visto a ponta do iceberg — diz Dirk Friedriszik, parlamentar do estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, onde a Nordkreuz foi fundada. — Não é apenas o KSK. A real preocupação é: essas células estão por toda parte. No Exército, na polícia, nas unidades de reservistas.

O Nordkreuz foi um dos grupos que estavam fazendo preparativos elaborados para o “Dia X”. Membros da inteligência nacional receberam uma dica em 2016, e os promotores lançaram uma investigação em meados do ano seguinte, 2017. Mas levaram alguns anos até que a rede, ou uma parte pequena dela, fosse levada aos tribunais.

Mesmo agora, apenas um integrante do grupo, Gross, foi formalmente acusado, por posse ilegal de armas, não por conspiração.

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No ano passado, Gross recebeu uma sentença de 21 meses, com direito a cumprir em liberdade. O veredicto foi tão ameno que, este ano, promotores do estado entraram com recurso, jogando o caso em uma nova rodada de deliberações.

Alguns integrantes do Nordkreuz pareciam falar tão a sério que compilaram uma lista de inimigos políticos. Heiko Böhringer, político da área onde o grupo está baseado, recebeu ameaças de morte.

— Eu pensava que essas pessoas eram malucos sem solução que assistiram a muitos filmes de horror — afirmou. — Mudei de ideia.

O clube de tiro em Güstrow, uma cidade rural no Nordeste da Alemanha, fica no final de uma longa estrada de terra e é protegido por um portão pesado. Arame farpado cerca o terreno. Uma bandeira alemã tremula com o vento.

Clube de tiro em Gûstrow, Alemanha, onde os integrantes da Nordkreuz se encontravam Foto: GORDON WELTERS / NYT
Clube de tiro em Gûstrow, Alemanha, onde os integrantes da Nordkreuz se encontravam Foto: GORDON WELTERS / NYT

Gross, o policial, era um visitante regular do local. Foi  paraquedista e oficial de reconhecimento no Exército alemão mesmo antes de seu batalhão ter sido absorvido pela força de elite militar do país, a KSK.

Outro a frequentar com certa assiduidade o clube era Frank Thiel, campeão de competições de tiro e instrutor de ações táticas, sempre requisitado por unidades da polícia e das Forças Armadas ao redor da Alemanha.

Rede protegida

No final de 2015, enquanto conduzia um curso de tiro para a KSK no sul do país, Thiel ouviu falar de uma rede de comunicação protegida, de alcance nacional, dedicada a compartilhar informações sobre a situação de segurança na Alemanha, e sobre como se preparar para uma crise.

Ela era mantida por um soldado chamado André Schmitt. Mas todos o conheciam como Hannibal.

Rapidamente, cerca de 30 pessoas, muitas delas frequentadoras do clube de tiro de Güstrow, se juntaram à divisão do Norte da rede de Schmitt, seguindo de forma ávida suas atualizações. Isso não foi muito antes da decisão de Gross de criar um grupo paralelo, para que pudessem se comunicar e se encontrar localmente.

Em janeiro de 2016, a rede se tornou a Nordkreuz. Ao longo do tempo, como contam seus membros, o grupo se transformou em uma irmandade, com um objetivo comum que dominaria suas vidas: se preparar para o “Dia X”.

Eles começaram a juntar suprimentos para sobreviver por 100 dias, incluindo comida, combustível, itens de higiene pessoal, rádios, medicamentos e munição. Gross recolheu cerca de € 600 (R$ 2.580 pela cotação da época, R$ 3.689 pela cotação de hoje) de cada integrante para pagar pelos itens. No total, conseguiu cerca de 55 mil munições.

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O grupo identificou uma “casa segura”, onde os membros ficariam com suas famílias no “Dia X”, uma antiga vila de férias usada na época da Alemanha Oriental.

— O cenário era de que alguma coisa ruim poderia acontecer — Gross revelou. — Nos perguntamos: para o que gostaríamos de nos preparar? Daí decidimos que, se era para fazer aquilo, iríamos até o final.

A pergunta que os investigadores estão se fazendo agora é: o que ele quis dizer com “até o final”?

Gross insistiu que o grupo estava apenas se preparando para o que ele via como o dia em que a ordem social iria desmoronar, o “Dia X”. Ele disse que jamais planejaram realizar homicídios, ou mesmo causar danos. Mas pelo menos um dos integrantes parece trazer uma história um pouco diferente.

— As pessoas seriam agrupadas e assassinadas — Horst Schelski disse aos investigadores em 2017, de acordo com transcrições de seu depoimento, compartilhadas com o New York Times.

Inimigos políticos

Schelski é um ex-oficial da Força Aérea e o relato dele é questionado por outros integrantes. Ele está centrado em um encontro que diz ter ocorrido no final de 2016 em uma parada de caminhões em Sternberg. Ali, Gross se encontrou com outros homens, no que se tornou uma célula à parte dentro do Nordkreuz.

Entre os demais presentes estavam dois homens hoje investigados por suspeita de planejar atos de terrorismo. Pelas leis alemãs, eles não podem ter seus nomes completos revelados. Um era Haik J., um policial, assim como Gross. Outro era um advogado e político de Rostock, Jan Henrik H.

Schelski disse à polícia que Jan Henrik H. mantinha um fichário em sua garagem com nomes, endereços e fotos de políticos e ativistas locais, considerados “inimigos políticos”. Boa parte das informações ali contidas veio de fontes públicas. Mas havia notas escritas à mão com dados obtidos de um computador da polícia.

Enquanto bebiam um café na parada de caminhões, Jan Henrik H. mudou o rumo da conversa e passou a falar das “pessoas no arquivo”, dizendo que eram “perigosas” ao Estado e que precisavam “se livrar delas”, disse Schelski posteriormente à polícia.

Depois do encontro, ele afirmou ter se distanciado do grupo.

A essa altura, o serviço de inteligência já estava observando a ação. Oito meses depois do encontro na parada de caminhões, autoridades realizaram a primeira de uma série de operações nas casas de vários integrantes do Nordkreuz.

Por dois anos, as operações e o trabalho de inteligência descobriu armas, munição, listas de inimigos e uma lista de pedidos para o “Dia X” que incluía sacos para cadáveres e óxido de cálcio.

O New York Times perguntou a Gross sobre os sacos para cadáveres. Ele disse que eram “itens para vários fins”, que poderiam ser usados como capas para sacos de dormir ou para o transporte de grandes volumes.

Promotores ligaram a munição ilegal encontrada na casa de Gross a depósitos militares e da polícia ao redor do país, indicando a existência de vários colaboradores. Muitas dessas unidades costumavam praticar tiro em Günstrow.

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Três outros oficiais da polícia são suspeitos de terem ajudado Gross, e estão sendo investigados. Durante seu julgamento, ele disse não se lembrar como conseguiu a munição. Em nosso encontro, manteve essa narrativa.

Por outro lado, não teve problemas em expressar suas visões de mundo.

A chanceler Angela Merkel “merece estar no banco dos réus”, disse ele. Cidades multiculturais no Oeste da Alemanha “são o califado”. A melhor forma de escapar da imigração era se mudar para o interior do Leste do país, “onde as pessoas ainda se chamam Schmidt, Schneider e Müller”.

Os integrantes da Nordkreuz nunca revelaram o local da vila de férias que deveria ser usada como casa segura no “Dia X”. Ela permanece ativa, disse Gross, que no auge do planejamento do grupo disse a um integrante que a rede possuía 2 mil pessoas com as mesmas ideias, na Alemanha e no exterior.

— A rede continua lá — disse.