Exclusivo para Assinantes
Mundo

'Bolsonaro é um exibicionista do ódio', diz especialista em extrema direita

Para a jornalista alemã Carolin Emcke, narrativa populista não se encaixa na realidade da Covid-19 e irá se esfacelar
Carolin Emcke, em foto tirada em Berlim, na Alemanha Foto: ANDREAS LABES / Divulgação
Carolin Emcke, em foto tirada em Berlim, na Alemanha Foto: ANDREAS LABES / Divulgação

RIO — Basta uma observação mais atenta para perceber uma transformação na manifestação do ódio na esfera pública. Alguns cliques no Twitter, a leitura de uma seção de comentários ou das notícias. Em "Contra o Ódio", publicado em 2016 e que sai agora no Brasil pela editora Âyné, a jornalista e escritora alemã Carolin Emcke, referência global no combate à extrema direita, discorre sobre as manifestações deste fenômeno, que ameaça e oprime mulheres, indígenas, LBGTIs e põe em risco a ordem democrática.

Apesar de focado no cenário alemão, as reflexões que Emcke faz são universais: falam sobre a construção de um coletivo que, ao invés de respeitar as diferenças, defende a homogeneidade. Os diferentes, portanto, sejam eles defensores dos direitos humanos, imigrantes, negros ou pessoas trans, são vistos como inimigos. Ex-correspondente de guerra da revista alemã Der Spiegel, Emcke teve a obra laureada com o Prêmio da Paz oferecido pelo livreiros alemães durante a Feira do Livro de Frankfurt em 2016.

Ao GLOBO, em entrevista por e-mail, a autora classificou o presidente Jair Bolsonaro como um "exibicionista do ódio" que se provou "antidemocrático em sua essência", e disse que não é uma coincidência que os países mais afetados pela Covid-19 sejam governados por figuras populistas .

Em “Contra o Ódio”, a senhora demonstra esperança que movimentos populistas e partidos possam se esfacelar graças à arrogância individual e a divisões  internas. O livro, no entanto, precede as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro, além do Brexit, por exemplo. A senhora continua esperançosa ou acha que esses movimentos ganharam tração nos últimos quatro anos?

Ninguém escreve livros sobre ódio e racismo esperando que (o conteúdo) se prove correto. No entanto, o dogma da pureza que eu analiso em “Contra o Ódio” se tornou ainda mais predominante desde que escrevi o livro. Os movimentos e regimes antidemocráticos, autoritários, revisionistas e racistas têm sido bem-sucedidos nos EUA e no Brasil. Eu, no entanto, ainda acho que esses movimentos e regimes eventualmente irão se esfacelar, principalmente porque fanáticos e populistas negam a realidade. Os primeiros, porque acreditam apenas no que soa bem e pode ser útil para manipular as pessoas. Os outros, porque acreditam apenas em seus dogmas. Você pode ver isso com Trump e Bolsonaro neste momento: são completamente inaptos e inúteis quando confrontados com uma realidade — a Covid-19 — que não se encaixa em sua narrativa populista e não pode ser manipulada. Eles vão fracassar.

Entrevista : ‘Cada tribo enxerga na pandemia a confirmação de suas convicções', diz fundador dos Médicos Sem Fronteiras

Em suas conclusões, a senhora diz que a única maneira de lutar contra a antidemocracia é por vias democráticas e constitucionais. Pelo seu ponto de vista, o comportamento de Bolsonaro representa uma ameaça à democracia brasileira?

Ao meu ver, Bolsonaro se provou antidemocrático em sua essência. Ele não respeita os direitos humanos, as instituições democráticas, o conhecimento científico e ele certamente não representa e nem quer representar todos os brasileiros. Ele sequer tem vergonha disso. Bolsonaro é um exibicionista do ódio (destaque da autora). Ele simplesmente parece não se importar com o país ou com a população como um todo. Basta você ser indígena, homossexual, transexual, mulher, ou simplesmente pobre, para ser renegado como um cidadão, como um portador de direitos inalienáveis. O que me dá esperança são os indivíduos e todos os grupos que representam um Brasil diferente, que estão lutando pela cultura democrática, pelos direitos humanos e das pessoas indígenas. Uma democracia é para todos — e só pode ser defendida por todos.

A senhora escreve sobre a morte de Eric Garner (homem negro que morreu estrangulado por um policial branco em Staten Island, Nova York, em 2014) e como o racismo estrutural e a brutalidade policial estão enraizados na nossa sociedade. O movimento global que está ocorrendo desde o assassinato de George Floyd pode ser um ponto de virada em direção a uma sociedade mais inclusiva?

Eu sou otimista. Apesar de escrever sobre violência e violações dos direitos humanos há mais de 20 anos, eu não tenho como não ter esperança. Historicamente, nós vemos que todo movimento ou processo de emancipação foi seguido por uma retaliação. No que diz respeito à brutalidade policial e ao racismo, essa é uma batalha muito, muito longa. O dogma autoritário dentro da polícia, o uso excessivo de força — esse não é um problema só nos Estados Unidos, mas também em toda a América Latina e em muitas sociedades europeias. Se estamos falando sério sobre transformar a política, é necessário mudar de verdade a cultura, a educação.

O racismo precisa ser desaprendido, e isso significa que você precisa enfrentar (no currículo escolar, no treinamento, na cultura popular, em filmes e novelas) o olhar e a imaginação racista, a linguagem racista que permanentemente marginaliza ou demoniza os não brancos. A polícia precisa treinar e praticar a desescalada [das tensões]. Atirar ou matar alguém não é uma solução para pacificar uma rua ou um bairro. A polícia precisa ser responsabilizada quando viola a lei. Nós temos um longo caminho pela frente. No entanto, o movimento Vidas Negras Importam tem uma força real e internacional que pressiona nossas sociedades a lidarem com seus passados coloniais, com o racismo estrutural e com a desigualdade.

Até que ponto a senhora acha que as redes sociais auxiliam na disseminação do discurso de ódio? Como isso pode ser endereçado?

As redes sociais mudaram totalmente e desvirtuaram a estrutura da esfera pública. Nós precisamos encontrar e proteger os espaços onde a formação de opinião pública ocorre e onde o conhecimento e a informação são compartilhados. Sim, antes havia ódio e ressentimento, mas agora temos um instrumento que dissemina ódio, morte e ameaças de estupro de maneira absolutamente descontrolada e sem filtros. As novas oligarquias da internet, os monopólios de Google e Facebook já provaram não ter qualquer interesse em proteger a verdade, distribuir a informação ou em garantir um certo padrão de precisão ou os direitos humanos. O poder de mobilização para o ódio e para a violência é total. Nós precisamos usar todo o poder legal para interromper isso. Precisamos introduzir leis mais duras contra o discurso e os crimes de ódio. Acho que discutir como a informação e a verdade são distribuídas é A [destaque da autora] questão democrática do nosso tempo.

Entrevista: 'Estamos diante de uma nova grande transformação', diz economista francês sobre impacto da pandemia

Nós vimos, especialmente nos primeiros dias da quarentena, diversos episódios de xenofobia contra asiáticos. A senhora acha que estes episódios podem aumentar com a retomada da economia? Como a Covid-19 pode impactar a maneira como pensamos em nós mesmos como uma sociedade?

Com o início da pandemia, houve uma contagem regressiva para a culpabilização. Você poderia contar e esperar para ver os primeiros grupos que seriam escolhidos como objetos nos quais todos os medos seriam projetados. Em épocas de medo ou desorientação, você precisa simplesmente de agitadores que canalizem as emoções contra um “outro”, seja ele asiático ou de origem cigana. É horrível que esse mecanismo arcaico ainda funcione. Não é apenas esse aspecto da pandemia que me preocupa, no entanto. Com o lockdown, a violência doméstica irá aumentar, assim como a brutalidade policial, as desigualdades que já existem na sociedade serão aprofundadas: os mais velhos, os marginalizados, os pobres, as mulheres, os indígenas, eles serão menos protegidos que outros grupos.

Os países com mais casos de Covid-19 — EUA, Brasil, Rússia, Índia e o Reino Unido — são comandados por líderes nacionalistas. Críticas por falta de transparência, informações falsas e negligência também são amplas. A senhora acha que isso é coincidência? Que impacto isso pode ter no futuro?

Não é coincidência. Ideólogos são particularmente inúteis em lidar com crises como essa. Você não pode manipular um vírus ou disseminar informações falsas porque o vírus ignora as suas mentiras. Isso não é mais um jogo nem um espetáculo político. Isso é real. Você não derrota uma pandemia instigando o ódio contra mulheres ou pessoas trans, você não derrota uma pandemia mentindo sobre seu sistema de saúde subfinanciado ou fantasiando sobre um passado autoritário no qual tudo era supostamente melhor. As pessoas morrendo em suas casas e nos hospitais contam a história real.

A senhora diz que o ódio se tornou mais explícito do que poderia imaginar há apenas alguns anos na Alemanha. Você acha possível que grupos de extrema direita voltem ao poder em algum futuro próximo?

Ninguém sabe, e eu não gosto de especular. No entanto, sei que não podemos assumir que nossas conquistas democráticas estão garantidas. Uma democracia é um projeto aberto, é algo que nós possuímos. Precisamos trabalhar nela, aprofundá-la, ampliá-la e protegê-la.