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Boris Johnson marca diferenças de outros líderes da nova direita global

Discurso pacificador após a vitória, atenção às mudanças climáticas e visão progressista em temas como casamento gay distinguem premier de outros líderes
Foto: POOL / REUTERS
Foto: POOL / REUTERS

LONDRES — Numa cerimônia protocolar, a rainha Elizabeth II lerá nesta quinta-feira no Parlamento o programa de governo do primeiro-ministro Boris Johnson para a próxima legislatura, depois das eleições gerais de 12 de dezembro nas quais os eleitores britânicos deram ao Partido Conservador uma maioria absoluta de 365 dos 650 assentos da Câmara dos Comuns. O mundo, entretanto, ainda tenta interpretar o significado da vitória de Boris no contexto mais amplo da emergência de populismos e nacionalismos.

O primeiro-ministro montou o cavalo selado do Brexit — que deve tirar o Reino Unido da União Europeia até o dia 31 de janeiro — e promete que o país terá um futuro grandioso em voo solo. A mensagem tem sido lida como um sinal de que ele vai na mesma linha do americano Donald Trump, do húngaro Viktor Orbán, do polonês Jarosław Kaczyński e do brasileiro Jair Bolsonaro. Analistas ouvidos pelo GLOBO, porém, apontam diferenças na cartilha de Boris.

O Partido Conservador tem um nome que se presta a mal-entendidos. Segundo Victoria Bateman, professora de História Econômica da Universidade de Cambridge, na legenda convivem pelo menos dois tipos de convicção que podem parecer contraditórias. Há o eleitorado dos “valores tradicionais”, mas também o que crê na liberdade individual e que teme ações governamentais que possam restringi-la.

— Espera-se que, como alguém que tem um pé em cada um desses campos, que Boris Johnson também acredite na máxima “viva e deixe viver” — disse Bateman.

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A agenda econômica de Boris tampouco se encaixa perfeitamente no receituário da direita, até porque agora ele tem um novo público a contentar. Parcela expressiva do eleitorado que lhe deu a vitória veio de redutos da oposição trabalhista no decadente cinturão industrial do norte da Inglaterra e espera gastos públicos generosos com infraestrutura e programas sociais.

Boris foi mais para a direita no tema da imigração, pauta importante do público que o elegeu, o mesmo que optou pelo Brexit no referendo de junho de 2016. Entre as controvérsias que o aproximam de outros dirigentes da direita populista, destacam-se declarações racistas contra imigrantes e muçulmanos, observa João Carlos Magalhães, especialista em participação política da London School of Economics. O primeiro-ministro comparou mulheres muçulmanas que só deixam os olhos à mostra a caixas de correio. Quando prefeito de Londres, porém, Boris foi favorável a regularizar todos os imigrantes sem documentos da capital.

A pauta de costumes que tanto mobilizou outros líderes da nova direita não está em discussão no Reino Unido. Até onde se sabe, Boris não é religioso. Sua vida afetiva é conturbada, mas a opinião pública britânica parece indiferente a isso. Em discurso recente, ele enumerou o que chamou de melhores valores britânicos, “da democracia ao Estado de direito, do livre comércio à liberdade de expressão, à liberdade de amar quem você quiser”. Foi o Partido Conservador que apresentou a proposta e, ao lado de outras legendas, aprovou o casamento gay no país.

— Johnson é um animal político, cria de um dos dois grandes partidos do sistema britânico. É “mainstream" — disse Magalhães.

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Para Quentin Peel, especialista do centro de estudos Chatham House, certos temas presentes no discurso da nova direita são politicamente inaceitáveis no Reino Unido, como a homofobia. A religião tem relevância no debate político. Segundo Peel, o premier não é dirigido por ideologia nem convicções fortes, embora se tenha aliado a pessoas mais ideológicas do que ele.

— Além disso, é jornalista e sabe como chegar às primeiras páginas. Não sabemos quem é o verdadeiro Boris — disse.

O premier tampouco contesta a mudança do clima, diferentemente de Trump, que retirou os EUA do Acordo de Paris.  Boris incluiu o tema como prioridade em seu discurso da vitória. As mudanças climáticas estão no topo das preocupações de 85% dos adultos britânicos, segundo pesquisa de opinião do instituto Ipsos. O premier determinou um prazo considerado ousado por especialistas para tornar o país neutro em emissões de carbono e ofereceu a cidade de Glasgow como sede para a próxima grande conferência do clima, a COP 26.

— Johnson não vai liderar uma revolução verde, como prometia o líder da oposição Jeremy Corbyn, mas continuará agindo como o governo britânico vem fazendo, com avanços cuidadosos — disse Magalhães.

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Nada disso, contudo, permite predizer os rumos do novo governo, que, segundo o especialista da LSE, “navega ao sabor do vento”. Magalhães é um dos que acreditam que o premier pode adotar medidas que lhe confiram mais poder, como mudar as regras eleitorais de modo a beneficiar o seu partido ou tentar diminuir o poder do Judiciário.

— Ele pode seguir num campo mais “autoritário” — avaliou, lembrando que, assim que assumiu em agosto o lugar de Theresa May, antes de ser consagrado pelo voto, Boris tentou estender artificialmente o recesso do Parlamento para impedi-lo de interferir em sua agenda de implementação do Brexit. Acabou sendo forçado a recuar por decisão da Suprema Corte.

Tampouco se sabe como o primeiro-ministro vai conduzir a política externa e  lidar com líderes da direita mundial.

— Mesmo que não concorde com as opiniões dessas lideranças em temas morais ou códigos sociais, ele não deve partir para a confrontação. É um homem de política mais do que de princípios: se for bom para a economia trabalhar com alguém que seja menos simpático a essas liberdades, duvido que opte pelo atrito. O que lhe importa não é se há alinhamento em matéria de costumes com Trump e Bolsonaro, mas se a opinião pública britânica está a par, se se interessa e se concorda com o que está acontecendo nesses países — explicou Victoria Bateman.

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No programa que será lido hoje pela rainha, estarão os primeiros sinais do programa de Boris para unificar um país dividido: embora vitorioso, seu Partido Conservador teve 43% do total de votos . Em outra diferença em relação aos demais líderes da nova direita, após a eleição ele fez um discurso pacificador.

— Sei que tem gente que nunca cogitou votar em mim e estou honrado em tomar emprestados esses votos — disse.

Em um primeiro aceno a esses eleitores, Johnson proibiu seus ministros de participarem do Fórum Econômico Mundial, que reúne todos os anos a nata da elite financeira global em Davos, na Suíça. A ordem é concentrar-se nas promessas de governo: resolver o nó do Brexit e a crise do NHS, o sistema nacional de saúde britânico, que inspirou o SUS no Brasil.