Mundo Ásia

'Câncer malévolo': Kim Jong-un lança uma nova ofensiva contra influência do K-pop e da cultura sul-coreana em seu país

Músicas, séries e filmes do vizinho do Sul têm se espalhado cada vez mais na Coreia do Norte, um problema que o ditador quer enfrentar com leis mais duras
Ditador norte-coreano Kim Jong-un durante reunião com membros do Partido dos Trabalhadores da Coreia Foto: KCNA / via REUTERS
Ditador norte-coreano Kim Jong-un durante reunião com membros do Partido dos Trabalhadores da Coreia Foto: KCNA / via REUTERS

SEUL - Kim Jong-un chamou o K-pop e a indústria de entretenimento da Coreia do Sul de “câncer malévolo” que está corrompendo “trajes, cortes de cabelo, discursos e o comportamento” de jovens norte-coreanos. Sua mídia estatal havia alertado que, se a situação não fosse encarada, o K-pop poderia fazer a Coreia do Norte “desmoronar feito uma parede úmida”.

Após ganhar fãs por todo o planeta, a cultura pop da Coreia do Sul entrou na fronteira final: a Coreia do Norte, onde sua crescente influência tem levado o líder do Estado totalitário a declarar uma nova guerra cultural para acabar com ela. No entanto, até mesmo o ditador poderia ter dificuldades para conter a onda.

Eternity: Grupo de K-pop formado apenas por idols hiper-realistas levanta discussão sobre inteligência artificial

Nos últimos meses, não passou um dia sem que Kim ou a mídia estatal falassem contra as influências  “antissocialistas” que estão se espalhando pelo país, especialmente filmes sul-coreanos, K-dramas (novelas e séries do país) e vídeos de K-pop. Como parte de uma tentativa desesperada de reafirmar o controle, Kim havia ordenado que seu governo acabasse com a invasão cultural.

A censura é tudo menos uma birra de um ditador rabugento. Ela chega em um momento em que a economia do país do Norte está com dificuldades e a diplomacia com o Ocidente estagnou, o que talvez faça com que a juventude do país seja mais receptiva a influências de fora e desafie o controle rígido do líder sobre a sociedade norte-coreana.

— Jovens norte-coreanos acreditam que não devem nada a Kim Jong-un — disse Jung Gwang-il, um desertor que comanda uma rede de contrabando de K-pop na Coreia do Norte — Ele deve reafirmar seu controle ideológico em relação aos jovens se não quiser perder a base do governo dinástico de sua família — afirmou.

Alerta: Coreia do Norte adverte para corrida armamentista na Península Coreana

A propaganda estatal da Coreia do Norte, por muito tempo, descreveu a Coreia do Sul como um inferno cheio de pedintes. Por meio dos K-dramas, primeiro contrabandeados em fitas e CDs, os jovens norte-coreanos aprenderam que, enquanto lutavam para encontrar comida suficiente para comer durante o período de fome no fim dos anos 1990, as pessoas no Sul estavam fazendo dietas para perder peso. Atualmente, os vídeos e produtos culturais da Coreia do Sul são contrabandeados em pen-drives vindos da China, roubando o coração de jovens norte-coreanos.

A presença do entretenimento sul-coreano se tornou tão preocupante que a Coreia do Norte pôs em vigor uma nova lei em dezembro.  A medida prevê a internação por cinco a 15 anos em campos de trabalho para pessoas que assistirem ou possuírem itens ligados ao entretenimento sul-coreano, de acordo com parlamentares de Seul, informados por agentes da Inteligência do governo e por documentos da Coreia da Norte conseguidos pelo site Daily NK, de Seul. Antes, a pena máxima para esse tipo de crime era de cinco anos de trabalho forçado.

Os que fazem a ponte e levam os materiais para os norte-coreanos podem enfrentar punições ainda mais graves, incluindo a pena de morte. A nova lei também prevê dois anos de trabalho forçado para aqueles que “falem, escrevam ou cantem no estilo sul-coreano”.

Disputa: Irmã de Kim Jong-un rebate presidente sul-coreano por críticas ao recente teste de míssil

A introdução da nova lei foi acompanhada por meses de advertências de Kim sobre influências externas. Em fevereiro, ele ordenou que todas as províncias, cidades e condados acabassem “sem piedade” com as crescentes tendências capitalistas. Em abril, ele falou que “sérias mudanças” estavam ocorrendo no estado “mental e ideológico” de jovens norte-coreanos. No mês passado,  o jornal estatal Rodong Sinmun alegou que a Coreia do Norte "desmoronaria" se tais influências proliferassem.

— Para Kim Jong-un, a invasão cultural da Coreia do Sul ultrapassou um nível tolerável — afirmou o editor-chefe do portal japonês Asia Press International, Jiro Ishimaru, que monitora a Coreia do Norte — Ele teme que seu povo possa começar a considerar o Sul uma Coreia alternativa para tomar o lugar do Norte — explicou.

Documentos da Coreia do Norte afirmam, segundo o Asia Press International, que as famílias dos que forem pegos "imitando o sotaque” da Coreia do Sul em suas conversas diárias ou em mensagens de texto podem ser expulsas de suas cidades como um aviso.

Força política: Kim Jong-un ganha ainda mais poder ao ser nomeado secretário-geral do partido do governo norte-coreano

Essa não é a primeira vez que a Coreia do Norte tenta domar uma “invasão cultural e ideológica”. Todas as rádios e TVs do país estão programadas para receber apenas transmissões estatais. O governo também bloqueia o acesso à internet global. Comitês disciplinares patrulham as ruas, parando homens com o cabelo longo e mulheres com saias que sejam consideradas muito curtas ou calças muito apertadas. O único tom de cabelo disponível é o preto, de acordo com a Embaixada da Rússia em Pyongyang.

No entanto, pode ser tarde demais para deter a penetração sul-coreana. Sr. Jung, de 58 anos, lembra de assistir “Ciúmes”, uma novela sul-coreana sobre amor adolescente, quando ele ainda estava na Coreia do Norte, e de e sentir um grande choque cultural.

— Na TV norte-coreana só passavam coisas sobre o partido e o líder — disse ele. — Você nunca via um exemplo tão natural das emoções humanas  como um homem e uma mulher se beijando — contou.

Em uma pesquisa feita pelo Instituto de Estudos da Paz e Unificação da Universidade Nacional de Seul, realizada com 116 pessoas que deixaram a Coreia do Norte em 2018 ou 2019, quase a metade afirmou que havia “frequentemente” assistido conteúdos da Coreia do Sul enquanto estavam no país do Norte. Um dos favoritos, de acordo com Jung, era “Aterrisando em você”, um programa sobre uma herdeira sul-coreana que, ao voar de parapente, é levada pela fronteira dos dois países por uma rajada de vento e se apaixona por um militar norte-coreano.

Passado: Livro de memórias de Kim Il-sung provoca debate sobre censura na Coreia do Sul

Kim Jong-un já pareceu mais flexível em relação à cultura estrangeira. Em 2012, ele foi mostrado na televisão estatal fazendo um sinal positivo para um grupo de meninas que, de minissaias, tocavam a música temática de "Rocky" enquanto os personagens Mickey e Minnie Mouse se exibiam por perto. Em quiosques avalizados pelo governo em Pyongyang eram vendidos os desenhos principais da Disney, como "O Rei Leão" e "Cinderela". Restaurantes exibiam filmes, concertos e programas de TV estrangeiros, conforme revelou a embaixada russa em 2017.

Apesar disso, a confiança de Kim enfraqueceu depois que a diplomacia com o ex-presidente dos EUA Donald Trump entrou em colapso em 2019, sem o levantamento das sanções econômicas americanas e da ONU contra a Coreia do Norte. Desde então, ele prometeu construir uma "economia autossuficiente" que dependesse menos do comércio com o mundo exterior. Logo após essa decisão veio o impacto da pandemia, aprofundando os problemas econômicos do Norte.

— A condição econômica do Norte é a pior desde que Kim Jong-un chegou ao poder, há uma década — disse Ishimaru — Se as pessoas estão com fome, as taxas de crime podem aumentar. Ele deve intensificar o controle para impedir a agitação social — completou.