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Por Gabriela García; Especial Para O Globo


Manifestante na performance de "O violador em seu caminho", no Chile: mulheres adultas e avós são as principais participantes do protesto contra o patriarcado Foto de Gabriela García com arte de Ana Luiza Costa — Foto:
Manifestante na performance de "O violador em seu caminho", no Chile: mulheres adultas e avós são as principais participantes do protesto contra o patriarcado Foto de Gabriela García com arte de Ana Luiza Costa — Foto:

SANTIAGO - É quarta-feira, 4 de dezembro, e do lado de fora do Estádio Nacional, em Santiago, milhares de mulheres vestidas de preto com lenços vermelhos no pescoço se preparam para apresentar “Um violador em seu caminho”.

— Força nos ovários! — grita uma jovem com um megafone, tentando organizar a multidão que, com os olhos vendados e organizada em filas que ocupam várias quadras, rodeam o estádio.

Quem protagoniza a performance de Lastesis hoje — assim se chama o coletiva interdisciplinar que criou o hino contra o patriarcado que deu a volta ao mundo — são principalmente mulheres adultas e avós.

Por meio de WhatsApp, Lastesis Senior, como se chamaram, conseguiram organizar uma das maiores manifestações feministas desde o início da explosão social no Chile, há dois meses.

O relógio marca as 19h30 no estádio que durante a ditadura de Pinochet funcionou como centro de detenção e tortura feminino. Enquanto na primeira fila mulheres de cabelos brancos e lábios vermelhos se movem ao ritmo da performance, em Valparaíso as suas quatro criadoras se reúnem para responder às perguntas de O GLOBO. Elas pediram as perguntas antes porque, como fazem sempre, queriam depois, na entrevista, responder coletivamente.

Daffne Valdés, Sibila Sotomayor, Lea Cáceres e  Paula Cometa: fundadoras do coletivo LasTesis  AFP — Foto:
Daffne Valdés, Sibila Sotomayor, Lea Cáceres e Paula Cometa: fundadoras do coletivo LasTesis AFP — Foto:

Vídeos de diversas partes do mundo, onde seus versos são gritados por mulheres da França, Espanha, Turquia, México, Líbano, Estados Unidos ou Brasil, refletem o impacto que o protesto continua causando.

“E a culpa não é minha / nem de onde estava / ou de como me vestia”, diz o coro que também motivou as mulheres curdas, do Quênia ou da Índia a sair às ruas nas últimas semanas. Os motivos sobram em Nova Délhi: em 23 de novembro, uma menina de 23 anos foi queimada viva por um grupo de cinco homens quando iria testemunhar contra seu agressor.

Daffne Valdés, Sibila Sotomayor, Paula Cometa e Lea Cáceres — as fundadoras do coletivo — estão emocionadas. A letra que elas criaram há oito meses em Valparaíso, e que depois modificaram após a violência policial sofrida durante as mobilizações sociais, está gerando uma catarse transversal.

— Nós adoramos que isso ressoe em muitos países, mas ao mesmo tempo é assustador — dizem as jovens, que preferem responder como um coletivo. — Isso significa que, em culturas tão diversas, em lugares onde até pensamos que não deveria ser um problema, a violência ainda existe: do micromachismo ao estupro e femicídio.

'O estuprador é você', protesto de chilenas, denuncia o feminicídio

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O coletivo surgiu há um ano e meio e é totalmente autogerenciado pelas quatro chilenas, de 31 anos. Provenientes de mundos diversos, como artes cênicas, história, literatura, ciências sociais ou design, elas se uniram para divulgar em espaços públicos a tese de autores feministas que amam.

As Lastesis começaram a trabalhar com “Calibã e a bruxa”, de Silvia Federici, e depois mergulharam nas investigações de Rita Segato, a antropóloga argentina que entrevistou estupradores presos no Brasil nos anos 1990 e que escreveu uma dúzia de livros como “A guerra contra as mulheres” ou “As estruturas elementares da violência”.

As teorias de Segato inspiraram as jovens chilenas a criar a letra de “Um estuprador em seu caminho”, e desmistificam a visão histórica de um dos crimes mais antigos do mundo. Segundo a feminista, o estupro não é um ato sexual praticado por um homem doente que não consegue controlar seus impulsos, mas uma forma de punição por desdém. Um ato moralizador por excelência.

Como a raiz do problema não estaria na cultura machista, mas no sistema político que a sustenta, a letra do hino de Lastesis começa assim: “O patriarcado é um juiz / que nos julga por nascer / e nosso castigo / é a violência que você não vê”.

A performance contra o estupro ultrapassou as fronteiras do Chile Gabriela García — Foto:
A performance contra o estupro ultrapassou as fronteiras do Chile Gabriela García — Foto:

Mas Daffne, Sibila, Paula e Lea não sabiam até então como esse sistema de poder tinha ramificações pelo mundo. Quando leram Segato, estavam pensando nas 515 mulheres mortas no Chile nos últimos 10 anos. E também, nas cifras alarmantes sobre estupro e abuso sexual que organizações não-governamentais, diferentemente da mídia oficial, divulgam.

— Isso nos mostrou que a realidade era muito mais alarmante do que pensávamos — reconhece o coletivo. — Uma cifra que nos marcou muito foi descobrir que apenas três em cada dez violações são denunciadas, o que significa que, aproximadamente, a cada 25 minutos no Chile, uma violação é cometida e que, além disso, dos poucos casos que são relatados, apenas 85% termina em condenação.

A performance aponta diretamente para a violência exercida pelo Estado, o sistema judicial e a polícia que hoje estão sendo fortemente questionadas no Chile. O abuso sexual durante as detenções é alarmante. No momento da publicação do relatório da Human Rights Watch (HRW) — em 21 de novembro —, o Instituto Nacional de Direitos Humanos contabilizava 74 denúncias de abuso sexual. Hoje já somam 108. "Os carabineiros parecem ser mais propensos a desnudar mulheres e meninas do que homens", diz o documento da HRW.

Enquanto no Estádio Nacional Lastesis Senior exorciza suas próprias dores, as mais jovens parodiam o hino dos carabineiros em frente a delegacias ou na Praça da Dignidade, que é como os manifestantes rebatizaram a Praça Itália desde 18 de outubro: "Dorme tranquila, moça inocente, sem preocupar-se com o bandoleiro, porque por seus sonhos, doces e sorridentes, zela seu amante carabineiro. O violador é você".

Leiam abaixo a entrevista completa do coletivo Lastesis:

Como vocês explicam que um hino que aparentemente apontava para um problema local tenha tido tanto eco em outros países?

A investigação que deu origem à performance mostra que isso transcende a explosão social do nosso país. Obviamente, a denúncia é mais forte e urgente pelos atos de violência político-sexual que vimos durante a crise, mas isso não impede que seja transversal. O Estado viola sistematicamente as mulheres. Tem a ver com o patriarcado que está em toda parte. O Estado está violando mulheres e minorias, ou pelo menos permite, por meio de suas políticas públicas, impunidade, discriminação e diferenças de gênero. Nossas críticas também apontam para os meios de comunicação, que incentivam essas agressões dedicando horas a mostrar as fotos de mulheres estupradas e assassinadas, culpando-as ou ridicularizando-as, e mostrando tão pouco os responsáveis. Alguns até disseram literalmente que elas mereciam aquilo. Isso também é algo generalizado.

As pessoas se perguntam como vocês se organizam. Em apenas uma semana, “Um estuprador em seu caminho” se tornou viral. O que vocês acham disso? Vocês previam que isso iria acontecer?

Nós claramente não dimensionamos e ficamos surpresas. Um grupo de artistas de Valparaíso nos chamou para uma atividade porque eles queriam organizar uma intervenção de rua após a explosão social. Nós modificamos parte da música em que já estávamos trabalhando para esse contexto. O vídeo gravado naquele dia, com 45 mulheres e minorias que foram nos apoiar, teve impacto. Mas nunca pensamos que se tornaria algo maior. Decidimos, então, realizar as intervenções em Santiago no dia 25 de novembro, no âmbito do dia pela não violência contra as mulheres. Mas nunca imaginamos a velocidade com que esse conteúdo se espalharia.

O objetivo do coletivo foi cumprido: difundir as ideias feministas no espaço público.

Sim. Mas nunca imaginamos que chegaria a esta escala, nem que isso aconteceria não por meio de nós, mas por uma série de grupos de mulheres e minorias que em todo o mundo se apropriaram da intervenção. Sem dúvida sem as redes sociais isso não teria acontecido, mas acima de tudo aconteceu porque as pessoas decidiram não apenas repostar do vídeo, mas sair para fazer a intervenção por conta própria, com próprio corpo. E nós amamos, é claro.

O mundo viu com bons olhos que os políticos estivessem dispostos a mudar a Constituição de Pinochet, mas manifestantes continuaram nas ruas. Quais são as demandas que mantêm as mulheres nas ruas?

É muito difícil interromper essas mobilizações porque, neste momento, quando há pessoas que perderam suas vidas, que foram estupradas, torturadas, mutiladas e violadas, é ingênuo pensar que as pessoas vão sair das ruas sem ter conseguido o que desejam. E é aí que entra “a revolução será feminista ou não será”. Porque enquanto a paridade de gênero não for garantida, enquanto as demandas feministas não estiverem sobre a mesa, ou enquanto o aborto gratuito não for pauta, enquanto continuarem nos criminalizando e nos obrigando a interromper nossa gravidez de forma clandestina, obviamente essa luta tem que continuar. São demandas com as quais não estamos dispostos a deixar de lutar como feministas.

Mulheres vestidas de preto com faixas nos olhos se participam de “Um violador em seu caminho”, no Chile Gabriela García — Foto:
Mulheres vestidas de preto com faixas nos olhos se participam de “Um violador em seu caminho”, no Chile Gabriela García — Foto:

Vocês sentem que a energia feminina produz coisas que a primeira linha, armada de pedras e escudos, não alcança?

É diferente o que as mulheres podem fazer nas manifestações, neste caso, vinculadas à performance, do que o que a primeira linha faz. Sim, acreditamos que as mulheres estão efetivamente vinculadas ao político, especialmente nas ruas. E isso não tira a repressão. Nós mesmas, quando realizamos intervenções em Santiago, sofremos a repressão policial com gás pimenta e bombas de gás lacrimogêneo contra nosso corpo. Não é que a violência diminua, é a mesma coisa. A diferença entre aqueles que perseveram na luta contra a força policial e o que fazemos é que nos apresentamos, gritamos slogans e depois pensamos em cuidar de nós mesmos e nos resguardar. Mas, olha, isso também tem a ver com o que dizemos em “Um estuprador em seu caminho” sobre as forças policiais. Quando as mulheres saem para protestar de alguma forma, fazemos isso com mais medo. Sabemos que corremos mais um risco, que não só podem me parar, espancar, torturar, mas também podem me estuprar. E isso, tanto para mulheres quanto para outras minorias, é uma forma de opressão extra.

A música é chiclete. Nós gritamos e dançamos. Mas então as mulheres voltam para casa e tiveram lembranças dolorosas. Vimos nas redes sociais como cada frase da letra se tornou um motor para denunciar, em primeira pessoa, abusos que foram silenciados. Como vocês veem esse fenômeno?

Que a performance esteja motivando denúncias é fortíssimo, mas acreditamos que isso deve acontecer. Chega de nos calar, chega de impunidade, chega de agressões sistemáticas. Vimos pessoas denunciando terem sido abusadas por anos, até décadas, e que até agora mantiveram segredo porque estavam com medo. É complexo porque, como o medo nos machuca, denunciar não deixa de fazê-lo, porque quando essas feridas são removidas nos encontramos novamente com experiências tão violentas em nossas vidas. É muito doloroso, mas talvez faça parte de um processo de cura, ou esperamos que faça.

Pensam em novas intervenções?

Ver a repercussão que isso teve em nível nacional e internacional reafirma nossa posição. Reafirma que é necessário tornar visível a violência política sexual nesse caso, e também a violência em geral, que nos une mulheres e minorias, a partir do macabro: estupro, assassinato, feminicídio, crimes transfóbicos. Precisamos continuar levantando a voz. E, no nosso caso, a arte, que foi a ferramenta que escolhemos, é claramente o caminho pelo qual continuaremos resistindo. E é difícil resistir, porque também trabalhamos com autogestão em um país que precariza artistas. Também lecionamos, que é outro emprego que não é valorizado. Então, dessas diferentes trincheiras, continuaremos lutando. Ainda não pensamos em um novo trabalho, porque, de fato, essa música deriva de um trabalho que ainda não lançamos e que agora se tornou uma obra em si mesma. Tudo o que sabemos é que vamos continuar, que é isso que temos que fazer.

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