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Cem anos antes, a raiz do movimento da Praça da Paz Celestial

Manifestações de 4 de maio desencadearam transformações na China e inspiraram ativistas de 1989
Foto: YAN CONG/The New York Times
Foto: YAN CONG/The New York Times

LONDRES - Não é de hoje que a Praça da Paz Celestial assombra o poder na China. Em outro aniversário redondo que incomoda os governantes em Pequim, o Movimento 4 de Maio, ocorrido há cem anos, foi inspiração para os estudantes que saíram às ruas em 1989.

Em 1919, os alunos da Universidade de Pequim ocuparam os arredores da Cidade Proibida, em protesto contra o Tratado de Versalhes, pelo qual as potências do Ocidente entregavam a cidade de Qingdao ao Japão. A concessão foi considerada uma humilhação para a nação, sobretudo porque a China estava do lado dos vencedores. As manifestações espalharam-se pelo país, visando um governo considerado incapaz de proteger os interesses da nação.

No final de abril, em comemoração no Grande Salão do Povo, que fica na Praça da Paz Celestial, o presidente Xi Jinping fez um discurso cuidadosamente calibrado sobre o 4 de Maio. Chamou-o de “grande movimento revolucionário patriótico”, lançado “para salvar a nação da submissão, salvaguardar a dignidade nacional e reagrupar as forças nacionais”.

Cem anos atrás, um período de recuo histórico do poder chinês e apenas sete anos depois do fim do império e da fundação da República da China,  Pequim dobrou-se às demandas populares, deixando de assinar o tratado. O então reitor da Universidade de Pequim, Chen Duxiu, escreveu na sua revista, “Nova Juventude”, que apenas “a democracia e a ciência podem salvar a China do obscurantismo político, moral, acadêmico e intelectual em que se encontra”. Chen foi um dos fundadores do PCC, em 1921, e seu primeiro secretário-geral.

O Movimento 4 de Maio influenciou a classe artística e intelectual chinesa e deu origem ao Movimento da Nova Cultura. Foi ali que o complicado e rebuscado chinês clássico foi substituído pelo simplificado, mais acessível.

Um movimento semelhante é considerado impensável na China de hoje, onde o meio universitário tem sido monitorado com lupa pelas autoridades. Nos últimos meses, grupos de estudantes marxistas foram reprimidos, parte deles por defender a formação de sindicatos independentes em centros industriais do país.

Para observadores da política chinesa, a despeito das preocupações do governo há pouca motivação para manifestações estudantis no país neste momento. Um diplomata ressalta que, hoje, a China “faz-se respeitar internacionalmente”.

No discurso sobre os cem anos do 4 de Maio, transmitido pela TV estatal, Xi pediu aos jovens chineses que abraçassem o “espírito” do movimento e amassem a pátria:

— Aqueles que não são patrióticos, que iriam tão longe a ponto de enganar ou trair a pátria, são uma desgraça para os olhos do país e do mundo. A juventude chinesa da nova era deve obedecer e seguir o partido.

Visitantes observam fotos do Movimento 4 de Maio, no Museu de Pequim Foto: YAN CONG/The New York Times
Visitantes observam fotos do Movimento 4 de Maio, no Museu de Pequim Foto: YAN CONG/The New York Times

O diretor do Instituto de China da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, Steve Tsang, afirma que o enfoque de Xi é seletivo. Para a maioria dos chineses, diz ele, o Movimento 4 de Maio representa “a chegada da democracia e da ciência no lugar da cultura tradicional” que, na visão dos manifestantes de 1919, puxava a China para trás.

Segundo Tsang,  o 4 de Maio “está ligado à incompetência do governo da época, e que, como sempre, Xi decidiu selecionar, ou ignorar, o que interessava”.

— A ciência é bem-vinda na China, desde que não questione o partido e o monopólio do poder de Xi. Mas a democracia não terá direito a visto para entrar no país — diz Tsang.

Graduação recorde

Xi referiu-se à democracia e à ciência como componentes principais do 4 de Maio, mas não tratou dos apelos por reformas. Segundo especialistas, parte do medo das autoridades chinesas se deve à redução do crescimento econômico. Somente neste ano, 8,34 milhões de estudantes devem se graduar em universidades no país, um recorde histórico, segundo o Ministério da Educação. Dez anos atrás, eram 5,3 milhões de jovens formados. Isso cria incertezas para quem sai das universidades atrás de empregos.

Visitantes posam com a bandeira da Liga da Juventude Comunista. Em 4 de maio de 1919, estudantes lideraram um protesto contra o colonialismo que inflamou o nacionalismo chinês Foto: YAN CONG / YAN CONG/The New York Times
Visitantes posam com a bandeira da Liga da Juventude Comunista. Em 4 de maio de 1919, estudantes lideraram um protesto contra o colonialismo que inflamou o nacionalismo chinês Foto: YAN CONG / YAN CONG/The New York Times

Ao GLOBO, o poeta Liao Yiwu, autor do poema “Massacre”, que gravou em uma fita cassete que percorreu a China depois de 1989, afirmou que o aconteceu 30 anos atrás não pode ser esquecido. Ele, que chegou a ser preso por quatro anos, já não mora mais no país.

"O cassete com a declamação circulou por cerca de 20 cidades chinesas. E mais de 30 pessoas que ajudaram a distribuí-lo foram presas e interrogadas. Seis foram presas por mais de dois anos.  Eu recebi sentença de quatro anos por 'instigar propaganda contra-revolucionária'", disse por e-mail, pedindo que as pessoas se recusem a esquecer.