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Chefe de governo por acaso, primeiro-ministro italiano vê sua popularidade subir na crise do coronavírus

Após ser o primeiro líder europeu a decretar quarentena, Conte venceu a desconfiança dos italianos e transformou-se em referência de confiança durante a crise
O primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, em sessão no Senado em 26 de março sobre o novo coronavírus Foto: Alberto Lingria / REUTERS
O primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, em sessão no Senado em 26 de março sobre o novo coronavírus Foto: Alberto Lingria / REUTERS

ROMA - Um dos efeitos da pandemia do coronavírus na Itália, país que registra um dos maiores números de mortes , foi consolidar o primeiro-ministro Giuseppe Conte como uma liderança nacional.

Advogado e professor universitário que há dois anos era um completo desconhecido da população, sem nunca ter tido qualquer cargo político, Conte transformou-se em referência institucional durante a emergência.

Chefiando um frágil governo que era considerado em risco até o final de fevereiro, antes da explosão da crise, ele viu sua popularidade crescer desde que decretou a quarentena geral, no início de março.

A Itália foi o primeiro país da Europa determinar o confinamento da população para enfrentar o inimigo invisível, medida depois replicada em diferentes lugares, inclusive na Europa, inicialmente desconfiada com a decisão.

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Ao anunciar o decreto da quarentena, no dia 9 de março, o líder do governo italiano discursou sozinho no seu gabinete. Emulando as palavras do inglês Winston Churchill na Segunda Guerra Mundial (1939-45), Conte disse que a Itália entrava na “sua hora mais negra” desde o fim do conflito. Coube ao jurista de 55 anos tomar a decisão mais grave do país desde que a atual Constituição foi promulgada, em 1947.

Desde então, ele centralizou as decisões na sua figura, utilizando nos pronunciamentos – na TV e também no seu perfil do Facebook —  frases em primeira pessoa como “eu fiz” ou “eu decidi”.

Conte ainda se transformou num dos líderes continentais, tomando a dianteira de um pedido endossado por nove países, ao pedir para a União Europeia apresentar um plano ousado de resgate das economias da região (o que passaria pela emissão de moeda, o chamado "eurobond"). O bloco ainda não chegou a um consenso sobre as medidas anti-crise, em especial pela resistência dos pares do Norte, como Alemanha e Holanda.

O politico tem se mostrado cauteloso sobre a reabertura do país após a quarentena, em vigor oficialmente até o início de maio. Atividades como livrarias e algumas fábricas começam a funcionar esta semana, mas o primeiro-ministro compartilhou sua decisão à análise de um comitê técnico-científico que monitora a emergência. Ele tem repetido que cada decisão política deverá ser referendada pelos cientistas.

Não menos importante, o primeiro-ministro também foi envolvido diretamente nas mortes provocadas pela Covid-19: o vice-chefe de seu segurança pessoal foi uma das vítimas.

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Pesquisa realizada em março pelo instituto Demos, a pedido do jornal “La Repubblica”, mostrou que 71% dos italianos aprovavam a postura de Conte na emergência, a melhor avaliação aferida pelo instituto nos últimos dez anos. Em fevereiro, a mesma pesquisa mostrava que ele era aprovado por 44% da população.

Outra pesquisa, divulgada nesta semana pelo instituto SWG e realizada em três países, mostrou Giuseppe Conte melhor avaliado (73%) no quesito "resposta do governo ao coronavírus" do que a alemã Angela Merkel (65%) e o francês Emmanuel Macron (54%).

—  É inegável que a sua estratégia funcionou muito bem, ele se tornou o rosto da resistência institucional ao vírus —  afirma o cientista político Giovanni Orsina, da Universidade Luiss, ressaltando que a emergência, pelo menos até o momento, salvou-o politicamente.

Ao mesmo tempo em que cresceu, seu principal adversário, o senador Matteo Salvini, líder do partido da ultradireita Liga e ainda o político mais popular do país, vem perdendo pontos, mostram diferentes pesquisas. Orsina afirma que a atual emergência colocou Salvini em dificuldade:

— Ele é agressivo e faz uma política de divisão, além de não ser nem um pouco institucional. Numa situação de unidade nacional, ele não pode continuar com a mesma postura, por isso ele sumiu.

Reinvenção

Além de reveladora das rápidas mudanças provocadas pela pandemia, a boa avaliação de Conte mostra como ele conseguiu reinventar-se dentro da própria crise, iniciada com alguns desencontros entre o governo central e os governos regionais.

O primeiro italiano infectado com o novo vírus foi identificado em 21 de fevereiro, um paciente de Codogno, pequena cidade da Lombardia, região do Norte e a mais afetada na pandemia. Semanas antes, um casal de turistas chineses já estava internado num hospital romano em tratamento da Covid-19.

Naquela primeira semana de crise, Conte chegou a culpar os funcionários do hospital de Codogno por supostamente não usar de maneira correta máscaras e luvas, o que teria contribuído para a difusão do coronavírus.

Criticado pela declaração, o primeiro-ministro virou alvo da Liga, partido que governa a Lombardia. Salvini pediu sua renúncia, sugerindo depois a formação de um governo de unidade nacional, com ele incluído, para atravessar a emergência, sendo convocada mais tarde uma nova eleição. Seu pedido não foi levado a sério.

A realização de um novo pleito é uma das obsessões de Salvini, que derrubou o primeiro governo Conte, iniciado em junho de 2018 e no qual ele era ministro do Interior.  A coalizão entre a Liga e o Movimento 5 Estrelas, que escolheu o advogado como primeiro-ministro, durou 14 meses.

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Após a renúncia de Salvini, a classe política reorganizou-se no Parlamento e um novo Executivo foi formado entre o Movimento 5 Estrelas e o Partido Democrático, de centro-esquerda, antes na oposição.  O nascimento do governo Conte 2, em setembro, significou a verdadeira emancipação do primeiro-ministro, que articulou-se como uma velha raposa política.

Sua recondução foi saudada por líderes europeus e presidentes como o americano Donald Trump, além de ter sido vista com simpatia pelo Vaticano. No mês passado, Conte se encontrou com o Papa Francisco em Roma para tratar da crise do coronavírus.

—  Ninguém no cenário internacional brilhou nesta crise. Conte se mostrou uma liderança com uma mensagem segura e emotiva —  afirma o professor de Ciência Política Oreste Massari, da Universidade La Sapienza.

Antes de anunciar a quarentena para os 60 milhões de italianos, Conte negociava com governadores do Norte o confinamento de parte da população daquela região, algo em torno de 16 milhões de pessoas. Os detalhes da norma vazaram para a imprensa e políticos, e muitos moradores viajaram para o Sul. Depois do episódio, o chefe de governo decidiu que as restrições valeriam para todo país.

Desde que o decreto entrou em vigor, o político exigiu a divulgação diária de um boletim com o números de mortos, de infectados e de curados em todo o país, argumentando que a transparência era fundamental para atravessar a crise.

Outra preocupação é com o humor da população diante das restrições. O primeiro-ministro disse ser importante observar esse aspecto para não provocar distúrbios sociais.

Analistas são unânimes ao apontar falhas cometidas pelas autoridades italianas no início da emergência, mas Oreste Massari considera que Conte tomou as medidas certas no momento certo. “Se elas viessem antes, poderiam criar muitas insatisfações. A população entendeu a gravidade”, conta.

Lembrando que a emergência muda diariamente, Giovanni Orsina alerta que será preciso observar o pós-crise especialmente no Norte, região que tem pouca representatividade dentro do atual governo.

— Sabemos que essa é uma crise sem precedentes, que ela é mundial, não apenas italiana, mas se a população do Norte entender que Roma fez pouco, Conte pode se transformar num bode expiatório perfeito —  afirmou.