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Chile elege Assembleia Constituinte neste fim de semana para enterrar Carta de Pinochet

Constituintes que serão escolhidos encontram amplo consenso social para maior papel do Estado em áreas como saúde e educação; condições da votação estão longe das ideais, com pandemia e desinformação
A candidata mapuche Juanita Millal faz campanha em Santiago; 17 das 155 cadeiras da Constituinte estão reservadas a representantes de povos originários Foto: MARTIN BERNETTI / AFP
A candidata mapuche Juanita Millal faz campanha em Santiago; 17 das 155 cadeiras da Constituinte estão reservadas a representantes de povos originários Foto: MARTIN BERNETTI / AFP

Neste sábado e neste domingo, o Chile dá mais um passo no processo de transformações políticas que eclodiu no país em 2019 e vota para eleger os 155 deputados constituintes que redigirão a sua nova Constituição, em substituição à formulada em 1980 pela ditadura de Augusto Pinochet. A Convenção Constituinte será o primeiro órgão do tipo no mundo formado paritariamente por homens e mulheres, e 17 de suas cadeiras serão reservadas para representantes de povos indígenas.

As eleições serão realizadas junto de votações para vereadores, prefeitos e, pela primeira vez, governadores, e acontecem em meio a uma série de crises nacionais. A pandemia já adiou duas votações no Chile, e, a despeito da vacinação avançada — 39% da população já tomaram duas doses —, ainda é intensa. Em 19 milhões de chilenos, 6.904 novos casos foram registrados ontem, seis vezes mais do que em outubro, quando houve o plebiscito para decidir se a Constituição deveria ser mudada.

Naquele pleito, oito em cada 10 chilenos votaram pelo fim do texto herdado de Pinochet. O atual documento já passou por 50 reformas, mas mantém artigos que foram alvo da ira de grandes manifestações pacíficas e violentas, sobretudo ligados a restrições da presença do Estado em áreas como saúde, previdência e educação.

Os membros da Constituinte terão nove meses, prorrogáveis por mais três, para escreverem a nova Carta, contando a partir da instalação da assembleia, prevista para junho. A aprovação de cada cláusula exigirá um quórum de dois terços, considerado alto, o que exigirá consensos amplos. Redigida a Carta, haverá um plebiscito no qual a população votará para decidir se endossa o novo documento ou se prefere a manutenção do atual.

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As regras para a escolha dos deputados constituintes são complexas: há mais de 1.300 candidatos inscritos, distribuídos em mais de 28 distritos e separados em mais de 70 listas. Há muitas coalizões e um alto número de candidatos independentes, muitos deles desconhecidos dos eleitores. Não foram feitas pesquisas que antecipem resultados nacionais. A eleição acontece em condições consideradas longe das ideais por especialistas:

— Não estamos nada preparados para esta votação. Esta foi uma campanha com altos níveis de desinformação, e uma parcela alta da população não sabe em quem votar. São quatro eleições simultâneas, e as pessoas podem se confundir — afirmou ao GLOBO Marta Lagos, diretora do instituto de pesquisas Latinobarómetro. — Isso pode diminuir a participação eleitoral, que possivelmente ficará em torno de 50%. Isso também pode afetar a legitimidade da convenção.

Lagos acrescenta que há “uma tremenda incongruência por parte do sistema político, que declarou esta eleição como a mais importante de uma geração, mas não adotou ações nem fez campanha para incentivar o voto”.

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Voto para governadores

A presença de candidatos independentes é notável: cerca de 75% dos candidatos nunca ocuparam um cargo político. Desde o ciclo de manifestações que começou em novembro de 2019, o pêndulo político no Chile tem se inclinado para a esquerda, com um aguçado enfraquecimento do governo de direita de Sebastián Piñera — em uma pesquisa divulgada em abril, ele aparecia com 9% de aprovação e 74% de desaprovação.

A direita e a centro-direita, no entanto, têm uma vantagem: os candidatos da coalizão no poder Chile Vamos vão concorrer em uma lista única, o que, de acordo com as leis eleitorais proporcionais — as mesmas empregadas em votações legislativas —, pode garantir alguns assentos a mais, frente à fragmentação da esquerda em ao menos três blocos. Uma das dúvidas é se as forças mais conservadoras alcançarão um terço dos assentos da convenção, o suficiente para bloquear propostas.

Stéphanie Alenda, socióloga da Universidade Andrés Bello que estuda a direita chilena, observa contudo que, mesmo se este terço for alcançado, isso não significa que mudanças importantes relacionadas à economia ficarão travadas. Alenda afirma que há no Chile hoje “um grande consenso de que o Estado deve ter maior presença para suprir necessidades básicas e prover um nível mínimo de igualdade”, expandindo a proteção social:

— Alguns temas poderiam sofrer objeções por parte da direita, mas o setor também inclui sensibilidades muito moderadas e centristas. Ainda que ultrapasse um terço dos votos, isso não significa que todos votarão em bloco.

As mudanças trazidas pela Carta poderão ser bem amplas: houve um acordo entre os partidos para que o país se mantenha como um Estado democrático de direito, com separação de Poderes; para além disso, a Carta está em branco, e uma transição para um modelo parlamentarista não é descartada, mesmo sendo considerada improvável.

Alenda considera as expectativas na população chilena com a nova Carta “moderadas e realistas em essência”, com demandas “dentro dos padrões da maioria das democracias mundiais”. Para além da expansão da rede de proteção social chilena, maior reivindicação da cidadania, ela cita como outras fortes demandas os direitos dos povos originários, não reconhecidos na atual Constituição; o domínio público dos recursos hídricos chilenos e a descentralização do poder federal.

Um passo nesta direção começa a ser dado já neste pleito: a primeira eleição para governador da História do Chile. Desde o século XIX, uma concepção centralista do poder predomina no país. Na década de 1990, foi criada a figura do intendente regional, que, sendo nomeado pela Presidência da república, exerce a função de autoridade regional nas 16 regiões do país. No segundo governo de Michelle Bachelet (2014-2018), no entanto, o Parlamento criou a figura do governador, que será eleito pela primeira vez a partir deste sábado.