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China merece críticas por falta de transparência, mas Trump busca ocultar próprios erros, afirma Matias Spektor

Em meio a ataques à China, presidente americano também cooperou com Pequim debaixo dos panos, diz pesquisador
Jovem usando máscara em frente a sinal de trânsito em Pequim Foto: NICOLAS ASFOURI / AFP
Jovem usando máscara em frente a sinal de trânsito em Pequim Foto: NICOLAS ASFOURI / AFP

As crescentes tensões entre EUA e China ganharam um novo round na semana passada, com rumores, sem evidências concretas, de que o novo coronavírus poderia ter escapado por acidente de um laboratório, e a revisão por Pequim do número de mortes em Wuhan, que havia sido subnotificado. O essencial da disputa entre os países, segundo Matias Spektor, internacionalista da FGV-SP, permanece o mesmo: há um jogo de empurra entre as partes, que ambicionam esconder falhas e, para isso, fomentam a hostilidade contra o outro lado.

Na troca de acusações entre Washington e Pequim, como separar o lado político da crítica legítima?

Em termos de responsabilidade, as duas grandes potências de nossa era, China e Estados Unidos, ofereceram respostas iniciais lentas e equívocas. A China demorou a reconhecer o problema publicamente e mantém níveis altos de opacidade. O governo Trump também demorou a agir e, quando o fez, foi de forma truncada. Além disso, os governos de ambos os países instrumentalizam a pandemia para culpar um ao outro de olho na opinião pública interna. Em ambos os países há proliferação de "fake news”, muitas vezes alimentadas pelos próprios governos. No maior teste de nossa geração, quem tem força para liderar não consegue cooperar. É péssimo para todo mundo.

Como a China tem lidado com a questão?

A pandemia representa um desafio enorme para a China porque o regime depende de crescimento econômico contínuo e de legitimidade popular. O COVID-19 afeta os dois lados dessa equação. Embora o regime tenha os instrumentos necessários para se sustentar no poder, os custos são crescentes. Basta ver o aumento de críticas de chineses notáveis mundo afora a respeito dos números que o governo utiliza para descrever a crise econômica. Ou veja a reação veemente que diplomatas chineses têm adotado mundo afora a críticas de terceiros. Pela primeira vez em décadas, a diplomacia chinesa está abertamente assertiva. Diante de críticas, os diplomatas respondem dobrando a aposta.

Quais críticas à China são justas?

Penso que a crítica mais relevante hoje diz respeito à transparência do governo em temas referentes ao vírus. Como a China sofreu a pandemia antes de qualquer outro país, ela tem uma posição privilegiada para informar o resto do mundo sobre a trajetória da doença. Precisamos saber sobre processos de reinfecção, mutação e comportamento da carga viral. Se o país adotar uma trajetória de opacidade e se o ambiente global desincentiva a cooperação, o custo será alto para todos nós.

Houve uma especulação, sem evidências concretas, de que o vírus poderia ter escapado por acidente de um laboratório em Wuhan. Isto muda algo sobre a responsabilidade chinesa?

Temos de ter muito cuidado com teorias da conspiração porque, embora sejam fenômeno antigo, agora voltaram à carga com força na era das redes sociais. Esta não é a primeira pandemia na qual um vírus é transmitido de animais para seres humanos. A noção de que há forças ocultas por trás da crise é confortável para quem busca uma oportunidade de instrumentalizar o problema. Por isso, para evitar cair em armadilhas, a gente deve seguir uma regra básica sempre que ouve uma história com boa chance de ser paranoia ou má fé: demandar comprovação empírica com boa evidência. O ônus da prova é de quem acusa.

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Na sexta-feira, a China recalculou o número de mortes em Wuhan, e aumentou a contagem em 50%. Críticos viram uma prova de omissão, e Pequim diz que teve problemas logísticos com a notificação no começo da pandemia. Como ver este impasse?

Eu não sou epidemiologista para ter uma resposta, mas posso lhe dizer que a vasta maioria dos países do mundo está tendo muita dificuldade com a notificação de casos. Estamos vivendo isso no Brasil de modo muito dramático. Suponho que a China estará enfrentando as suas dificuldades. Apesar de todos os recursos disponíveis, o sistema de saúde chinês também enfrenta grandes desafios.

E como entendemos o comportamento dos Estados Unidos?

Há três meses, antes da pandemia, Trump estava bem encaminhado para  uma reeleição confortável, graças a uma economia aquecida e a um desemprego mínimo. Agora, ele terá de pedir votos em meio a uma taxa de desemprego muito mais alta e uma economia estagnada. Ele tentou mobilizar o eleitor nacionalista chamando o COVID-19 de "vírus de chinês”, mas temos de ver quão eficiente será a mensagem.

Contexto: Pandemia eleva temor de Guerra Fria entre China e Estados Unidos

Como isto afeta a candidatura democrata de Joe Biden?

Os Democratas adotaram duas linhas paralelas. Por um lado, eles tem tentando se apresentar como uma voz da razão diante de um presidente descompensado. Eles têm defendido maior cooperação internacional e investimento em ciência. Por outro, Biden está dando cambalhotas para se apresentar como mais nacionalista que o próprio Trump. Nas últimas mensagens de campanha, Biden vem acusando Trump de ser antichina apenas da boca para fora, cooperando com o governo de Pequim por baixo dos panos. Biden tenta atrair assim o eleitor nacionalista que vai sofrer com a crise.

Há uma marca da crise até aqui?

A crise do corona expôs a falta de liderança global.  Os Bancos Centrais do mundo não conseguiram ainda coordenar as suas ações. O G7 tampouco. A OMS está muito enfraquecida. Quando comparamos a crise atual com a última crise global, de 2008, a diferença é notável: à época, houve liderança inconteste e capacidade rápida de reação conjunta. Agora, não.  O resultado será medido em número de mortes.

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Qual tipo de cooperação o impasse entre China e Estados Unidos impede?

Pense no mundo hipotético alternativo: teríamos  uma decisão conjunta entre Estados Unidos, China, União Europeia e Japão para criar um esquema de acompanhamento epidemiológico conjunto, com uma rede de laboratórios trabalhando de modo compartilhado. Teríamos uma resposta fiscal coletiva por parte do G20 financeiro, para mitigar a crise econômica galopante que se avizinha. Em vez disso, cada vez país está buscando soluções descoordenadas. Essa descoordenação é muito custosa porque pode produzir efeitos não intencionais bem perversos. A maior expressão da falta de cooperação é o que está ocorrendo com a Organização Mundial da Saúde, única instância de cooperação médico-epidemiológica multilateral.

Como você vê a entidade neste cenário?

A OMS também começou a agir tarde e provou estar toda travada e amarrada entre China e Estados Unidos. A OMS se recusou a trazer Taiwan [que não faz parte da organização] para o centro do debate, quando, de todas as democracias, Taiwan e Coreia do Sul foram as que melhor reagiram para conter o vírus, e fizeram tudo de maneira transparente. A decisão de Trump de suspender o financiamento à organização é nefasta. Esta era a hora de os países transformarem a OMS em um centro de informação eficiente. Como o vírus é novo, se não há um sistema cooperativo, em que lições aprendidas em um país cheguem a terceiros países, todos sofrem.

Há algum líder que se destaca, em meio à crise?

Quem está em situação confortável são os líderes que agiram muito cedo e com um nível muito alto de transparência. Na Argentina, Alberto Fernández teve uma subida na popularidade na casa dos 20%. Angela Merkel também sai muito fortalecida. Mesmo Boris Johnson, que demorou para agir, está aproveitando muito a situação, como a oposição não consegue acusá-lo de falta de transparência. Esta combinação entre ação rápida e transparência tem sido muito premiada, e não é o caso da liderança nem da China e nem dos Estados Unidos. Isso cria vulnerabilidades para ambos os governos. Pelo menos até agora, nenhum dos dois conseguiu tirar vantagem geopolítica da pandemia.