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Mundo Europa

Cinco anos após referendo do Brexit, separação da UE causa inúmeros problemas ao Reino Unido

Comércio com o bloco despenca, empresas fecham diante de dificuldades burocráticas e até violência sectária nas Irlandas volta a ser problema para Londres
Uma bandeira britânica diante de um mural com voluntários norte-irlandeses em Belfast aponta para o mais grave problema causado pelo Brexit: a ameaça à estabilidade do reino Foto: Paul Faith / Bloomberg
Uma bandeira britânica diante de um mural com voluntários norte-irlandeses em Belfast aponta para o mais grave problema causado pelo Brexit: a ameaça à estabilidade do reino Foto: Paul Faith / Bloomberg

LONDRES - Quando foram às urnas no polêmico plebiscito para decidir se deixariam a União Europeia (UE), a maioria dos eleitores britânicos não poderia imaginar que, cinco anos depois, o Brexit continuaria a assombrar o presente e o futuro do país. Mesmo com o divórcio formalizado — desde o início deste ano já é um para cada lado —, os processos da separação (e seus traumas) estão longe do fim.

— Não sei se terei deste vinho tão cedo. Os produtores estão relutantes por conta das taxas de importação e transporte. Não se entendem com os novos formulários, perdem horas na fronteira e, às vezes, não conseguem cruzá-la por um erro de digitação! Quer este outro enquanto ainda tem? — explica Patrick, o vendedor de uma grande distribuidora de bebidas em Londres.

Pelas contas do Observatório de Política Comercial da Universidade de Sussex, as exportações da ilha para a UE caíram 15%, enquanto as importações despencaram 32% no primeiro trimestre de 2021. Alimentos, peixes e têxteis são os setores mais atingidos. A Federação de Alimentos e Bebidas fala em queda de quase 50% das vendas para os europeus, o que atribui mais ao Brexit do que às restrições pandêmicas.

Com menos estrutura para se adaptar à burocracia, pequenas e médias empresas estão fechando as portas e postos de trabalho.

— Neste momento, é praticamente impossível defender que o Brexit foi bom para a economia. Erguemos barreiras de comércio aos países que correspondem a 50% das nossas exportações — disse ao GLOBO Michael Gasiorek, diretor do Observatório.

‘Guerra das salsichas’

Os britânicos acabam de pedir mais tempo aos europeus para desatar o nó das regras de exportação de carnes resfriadas. Tinham até o final do mês para resolver a questão. Sem isso, não poderão mais vender salsichas para a UE. Diante das resistências dos dois lados, fica difícil prever o desfecho da “guerra das salsichas”, como foi apelidada. O setor está apavorado, pois seu maior freguês é a Irlanda do Norte.

Esta é outra complicação que ameaça não só o mundo dos negócios, mas a integridade do próprio reino. O Brexit traçou uma perigosa divisória aduaneira interna com o chamado Protocolo da Irlanda do Norte, adendo sem o qual o acordo entre Londres e Bruxelas jamais teria sido fechado. O dispositivo separa os norte-irlandeses do resto do mercado britânico. Foi a alternativa encontrada para não separá-los fisicamente da República da Irlanda (do lado europeu). Os Acordos da Sexta-Feira Santa (1998), que pacificaram as Irlandas depois de anos de violência, previam, antes de tudo, a inexistência de controles de fronteiras entre os dois lados.

O premier Boris Johnson garantiu que não aconteceria. Mas, na prática, elas estão de volta. As pessoas podem transitar livremente. As mercadorias, não. A novidade esvaziou prateleiras de supermercados da Irlanda do Norte. Para a frustração dos locais, fanáticos por jardinagem (como os ingleses), já não há terra ou plantas à venda nas lojas especializadas, porque vêm da Inglaterra. As regras da UE proíbem importar terra de fora do bloco por questões sanitárias.

Politicamente, o problema é ainda mais delicado, pois alimenta antigas rivalidades. Unionistas, leais a Londres, sentem-se traídos. Já os separatistas animam-se com a ideia de se reunificar a província com a Irlanda, agora ainda mais próxima economicamente. Não por acaso foram registradas imagens de violência em um cenário que se pensou apaziguado.

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Esta semana, Leo Varadkar, ex-premier irlandês, reconheceu pela primeira vez que “a reunificação vai acontecer”.

— O Brexit põe a Irlanda do Norte em uma situação quase impossível. Desde 1998, não há fronteira. Vivo em Belfast. Se vou para Dublin, só sei que entrei em outro país quando olho o sinal do celular. É uma coisa pequena, mas simbólica. Tem importância para os nacionalistas. A Irlanda do Norte vai ter que reduzir sua dependência do mercado britânico e reorientá-la para a UE. Isso é complicado para os unionistas — afirma Billy Melo Araujo, da Queen’s University de Belfast, autor de vários livros sobre legislação comercial europeia.

O tema do Brexit jogou um balde de água fria no protagonismo global que o premier Boris Johnson pretendia mostrar na reunião do G-7, semana passada — a primeira cúpula internacional de alto nível de que o Reino Unido participava desde o divórcio da UE. O premier britânico foi a público dizer que a Irlanda do Norte é parte do Reino Unido, depois que o presidente francês, Emmanuel Macron, deu a entender que não era bem assim.

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Outro tema espinhoso do pós-Brexit é o uso dos recursos pesqueiros em águas britânicas. O peso da pesca para a economia não é grande.

— Mas o tema tem peso simbólico, como se viu recentemente com as tensões entre pescadores franceses e britânicos perto da Ilha de Jersey — disse Tatiana Coutto, pesquisadora do Centro de Estudos Europeus e de Política Comparada da Sciences Po.

Na Escócia, que votou maciçamente contra o Brexit, é cada vez mais forte o apoio a um novo plebiscito para deixar o reino. A partir de julho, centenas de milhares de europeus que vivem no Reino Unido podem ficar sem status de residência, segundo o centro de estudos UK in a Changing Europe. Este é o prazo para quem quiser continuar morando no país após o Brexit aderir ao maior programa de imigração já criado pelos britânicos. Mais de cinco milhões de pessoas já o fizeram. Mesmo assim, muita gente que deixou o país após a crise pandêmica resolveu não voltar por causa do Brexit. Pubs, restaurantes e o setor de carnes têm tido dificuldades para contratar mão de obra desde janeiro.

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‘Divisões seguem presentes’

O divórcio capturou a agenda do Reino Unido, que foi dividido às urnas naquele 23 de junho, e assim se mantém até hoje. Na noite desta quarta-feira, o grupo Best for Britain, de defensores da manutenção do país no bloco, vai projetar nas paredes de prédios emblemáticos em Bruxelas, a sede da UE, nomes de políticos e cidadãos contrários à separação e mensagens de esperança.

— As divisões seguem presentes. É como se o Brexit ainda estivesse acontecendo — disse Araujo.

Para ele, como a pandemia encobriu parte das consequências mais visíveis do divórcio, só será possível compreender o Brexit de fato em dois ou três anos. As temidas filas de passaporte nos aeroportos, por exemplo, ainda não aconteceram, porque ninguém está viajando.

Se os resultados econômicos são mais evidentes, os políticos variam conforme a visão do interlocutor. Há aqueles que festejam o acordo de livre comércio que acaba de ser firmado com a Austrália, o primeiro fora da UE, como a prova de que o país se tornou dono do próprio nariz. E há os que dizem que o entendimento, que, pelos cálculos do governo, oferece vantagens de 0,02% do PIB para o país, não é nada perto dos 4% e 9% do PIB perdidos com a saída do mercado único.

— O Brexit está muito longe de ter acabado — sentencia Gasiorek.