Clima e ciência
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Por , Em AFP — Ittoqqortoormiit, Dinamarca

O estrondo da queda dos icebergs no mar azul-turquesa do leste da Groenlândia é o som de um dos ecossistemas mais importantes do planeta cambaleando à beira do abismo. À medida que o gelo derrete, os caçadores da cidade de Ittoqqortoormiit — lar de uma das últimas comunidades de inuítes ou esquimós — se perguntam onde vão conseguir água potável.

Os mantos de gelo da Groenlândia podem conter um doze avos da água doce do mundo — o suficiente para aumentar em sete metros o nível do mar se derreterem —, mas as mudanças climáticas já ameaçam os suprimentos da população.

Invernos frios e gelo robusto são vitais tanto para a alimentação quanto para o abastecimento de água dos inuítes em Scoresby Sound, que vivem em conexão profunda com a natureza. Mas as temperaturas do Ártico estão subindo até quatro vezes mais rápido do que a média global.

Caçador gronelandês desdobra pele de urso polar em Ittoqqortoormiit — Foto: OLIVIER MORIN/AFP
Caçador gronelandês desdobra pele de urso polar em Ittoqqortoormiit — Foto: OLIVIER MORIN/AFP

Em uma elevação de tundra estéril, a cerca de 500 km do assentamento mais próximo, os 350 habitantes de Ittoqqortoormiit obtêm água fresca de um rio, abastecido por uma geleira que está derretendo rapidamente.

— Em poucos anos, terá desaparecido, as geleiras estão cada vez menores — diz Erling Rasmussen, da companhia local de serviços públicos Nukissiorfiit, depois do mês de julho mais quente já registrado em Summit Camp, uma estação de pesquisas no topo do manto de gelo da Groenlândia. — No futuro, podemos ter que beber água do mar.

Com o custo elevado e a qualidade duvidosa da água de degelo, outras comunidades isoladas da Groenlândia já estão se voltando para a dessalinização.

Gelo fino e ursos famintos

Scoresby Sound — o maior sistema de fiordes do planeta — só fica livre de gelo durante um mês ao ano, e os moradores que vivem lá dependem da carne trazida pelos caçadores para sobreviver à longa noite polar.

Navios de carga só conseguem chegar a Ittoqqortoormiit, na embocadura dos fiordes, uma vez por ano. Os colossais icebergs à deriva nas passagens estreitas são um desafio até mesmo para os marinheiros mais experientes.

— Nós precisamos da nossa carne. Não podemos simplesmente comprar carne congelada dinamarquesa — afirma Jorgen Juulut Danielsen, professor e ex-prefeito da cidade.

Anomalias na temperatura do mar — Foto: Arte/O Globo
Anomalias na temperatura do mar — Foto: Arte/O Globo

Mas, à medida que as altas temperaturas enfraquecem o gelo, a tradicional caça às focas, rastreando os buracos que elas abrem no gelo para respirar, tem se tornado progressivamente mais difícil e perigosa para os caçadores locais.

Peter Arqe-Hammeken quase perdeu a esposa e os dois filhos quando o gelo cedeu sob a moto de neve que usavam para caçar em janeiro passado, quando as temperaturas registraram -20º C. Sua esposa rompeu o bíceps ao tirar da água o filho mais velho, de 12 anos.

Menos neve também dificulta a circulação dos trenós puxados por cães, dos quais os caçadores dependem. E os desafios não são só para os humanos. O gelo marinho mais frágil também leva cada vez mais ursos polares famintos a buscar comida no assentamento, contam os moradores.

— Eles vêm para a terra perto da cidade, então as pessoas precisam ser cautelosas — diz Danielsen.

Bacalhau-polar em xeque

Emolduradas pelas montanhas em tons terrosos do Rode Fjord, as impressionantes paredes azuis das geleiras que se erguem do mar nos territórios de caça são vitais para o ecossistema. As condições extremas fazem com que o fiorde esteja entre os locais menos estudados do planeta, com partes cobertas por icebergs. Mas após cinco anos de planejamento meticuloso, a iniciativa científica francesa "Greenlandia" corre contra o tempo para documentar este lugar na linha de frente das mudanças climáticas antes que seja tarde demais.

— Ouve-se falar em aquecimento global, mas aqui você o vê — diz à AFP o chefe da expedição, Vincent Hilaire, a bordo do navio pesqueiro Kamak.

Caroline Bouchard, cientista-sênior do Centro de Pesquisas Climáticas da Groenlândia em Nuuk, diz temer que o recuo das geleiras vá tornar Scoresby Sound "um ecossistema menos rico".

As geleiras que chegam ao mar produzem a "ressurgência" — empurrando para cima as águas ricas em nutrientes do fundo do fiorde com suas águas frias de degelo. Mas à medida que as geleiras derretem, elas recuam para o interior e o ecossistema perde estes nutrientes: o plâncton que alimenta o bacalhau-polar, que por sua vez alimenta a foca e o urso, dos quais dependem os inuítes de Ittoqqortoormiit.

Consequências catastróficas

No convés do Kamak, Bouchard checa o conteúdo de suas redes, à medida que a luz brilhante do sol do Ártico ilumina a miríade de vida marinha em sua placa de Petri. Entre o plâncton e o krill, um crustáceo minúsculo, o número de larvas de bacalhau em suas amostras caiu de 53 no ano passado a apenas oito neste verão.

Embora Bouchard diga que é preciso fazer uma análise mais profunda para determinar as razões deste declínio, os números são surpreendentemente baixos.

— Se a população de bacalhau-polar colapsar repentinamente, o que vai acontecer com a foca-anelada, o que vai acontecer com o urso polar? — questiona.

O colapso em potencial do bacalhau-polar poderia ter consequências catastróficas para a população local, que depende dele tanto para se alimentar quanto para caçar.

— Não perdemos apenas Ittoqqortoormiit. Trata-se de um modo de vida único — diz Bouchard.

Algas vermelhas, nova ameaça

Novas pesquisas realizadas pela expedição "Greenlandia" trazem maus presságios para o futuro das geleiras. No fiorde afetado pelo aquecimento, um tom avermelhado tem se espalhado pelo gelo, o que tem sido apelidado de "blood snow" (sangue na neve).

A cor se deve à Sanguina nivaloides, uma alga da neve, descoberta cientificamente apenas em 2019, que desenvolve um pigmento vermelho ou alaranjado para se proteger do sol. Mas o pigmento também diminui a refletividade da neve e acelera seu degelo. Sabendo disso, mesmo o observador menos experiente consegue ver o véu carmim cobrindo extensas áreas de neve no fiorde.

Os cientistas dizem que a alga é responsável por 12% da superfície total anual de derretimento do manto de gelo da Groenlândia — "colossais" 32 bilhões de toneladas de gelo.

Com as algas aparentemente se espalhando, os cientistas acreditam que podemos estar diante de um círculo vicioso — as temperaturas em elevação aceleram o degelo das geleiras e promovem o crescimento das algas, que por sua vez aceleram seu derretimento.

'Precisamos acordar'

— Estamos enfrentando uma catástrofe — diz Eric Marechal, diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisas Científicas Francês (CNRS), segundo o qual,

Marechal afirma que para comprovar cientificamente uma tendência na escala das algas, são necessários 30 anos de dados — um luxo que o planeta pode não ter.

— O risco que temos [em geral] é o desaparecimento por completo do ecossistema — afirma. — Este processo pode ser interrompido com o tempo? Eu acredito que não.

Aproximando-se da enorme geleira que desaba em um vale íngreme em Vikingebugt, Hilaire, o líder da expedição, aponta seu rifle para um rastro deixado na lama por um urso polar.

Para Marechal, encarar o desafio de se aventurar pelo território dos ursos é um risco que vale a pena para coletar amostras da neve vermelha que salpica a geleira.

Sua equipe do CNRS e do Centro de Pesquisas sobre a Neve do serviço nacional de meteorologia francês (Meteo-France) correm para coletar amostras em campo na Groenlândia e recuperar dados históricos de satélite para compreender mais profundamente o comportamento das algas.

— Precisamos acordar e tratar desta questão seriamente — diz Marechal. — O que está acontecendo na Groenlândia [é chave para] a perturbação do ciclo global da água e o grande degelo que provoca o aumento do nível dos oceanos.

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