Mundo Ásia

Com animes e mangás, Japão aposta na cultura pop como política de Estado e conquista gerações de fãs

Governo promove produtos culturais como ferramenta de 'poder brando'; sucesso da Olimpíada é também questão política para Tóquio
Balões do Goku, personagem do desenho Dragon Ball, e o icônico Pokémon Pikachu, na parada do Dia de Ação de Graças de 2018 em Nova York Foto: GABRIELLA ANGOTTI-JONES / NYT/22-11-18
Balões do Goku, personagem do desenho Dragon Ball, e o icônico Pokémon Pikachu, na parada do Dia de Ação de Graças de 2018 em Nova York Foto: GABRIELLA ANGOTTI-JONES / NYT/22-11-18

O momento mais marcante da cerimônia de encerramento da Olimpíada de 2016 pouco teve a ver com o Rio. Ao olhar para o relógio e perceber que não chegaria a tempo no Brasil, o então premier japonês, Shinzo Abe, “transformou-se” em Mario. Como o mascote da Nintendo, cruzou o mundo em um cano até aparecer, de quepe e macacão, no gramado do Maracanã.

Se o Japão é o oitavo país no ranking de “poder brando” Soft Power 30 de 2019, feito pela consultoria britânica Portland, especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que a cultura pop japonesa é peça-chave da exploração desse prestígio. Não é à toa que as principais febres infantojuvenis dos últimos 40 anos vieram de lá.

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Os mais jovens, ao menos no Ocidente, não associam o Japão ao passado imperialista, mas a Pokémon, Sailor Moon e, mais recentemente, Demon Slayer. Lançada em 2020, a adaptação cinematográfica desses mangás derrubou o hoje clássico “A viagem de Chihiro” como o filme japonês de maior bilheteria da História.

Segundo David Leheny, professor da Universidade Waseda, em Tóquio, o sucesso do desenho de Hayao Miyazaki, que levou o Urso de Ouro em 2002 e o Oscar de melhor animação em 2003, foi um dos elementos que ajudou o governo a notar o potencial da cultura pop. Até ali, ele diz, havia certo ceticismo de que o Japão pudesse em algum momento ser percebido como uma potência do soft power .

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Outro catalisador, disse o professor em uma entrevista por e-mail, foi a publicação de uma reportagem do jornalista Douglas McGray na revista Foreign Policy, em 2002. Seu título fazia um trocadilho com Produto Interno Produto: o “Cool Nacional Bruto do Japão”. Falava, basicamente, da transformação do país em uma superpotência cultural.

Desde então, o conceito de Cool Japan é adotado pela diplomacia japonesa. Trata-se de uma referência à Cool Britannia da segunda metade dos anos, movimento impulsionado pela pungente cena cultural da época no Reino Unido, que trouxe consigo um certo orgulho nacionalista. Basta se lembrar da Union Jack no vestidinho da Spice Girl Geri Halliwell ou na guitarra de Noel Gallagher, do Oasis.

Pikachus enfileirados no lançamento de uma avião temático do Pokémon pela companhia aérea Skymark Airlines Foto: CHARLY TRIBALLEAU / AFP/21-6-21
Pikachus enfileirados no lançamento de uma avião temático do Pokémon pela companhia aérea Skymark Airlines Foto: CHARLY TRIBALLEAU / AFP/21-6-21

Oportunidade comercial

Ao contrário do Partido Trabalhista britânico, que surfou na onda do pop para pôr Tony Blair no poder em 1997, o governo japonês mira no público externo. O Cool Japan se sedimentou como política em 2010, com a criação do Escritório de Promoção das Indústrias Criativas pelo Ministério da Economia, Comércio e Indústria.

O objetivo era essencialmente comercial: os produtos culturais japoneses eram populares no exterior, apesar de atingirem nichos, e não traziam tanto lucro ou visitantes quanto poderiam para o país. Assim, apresentavam uma oportunidade após uma década de problemas econômicos.

O timing também coincidiu com a Hallyu, como a explosão global da cultura coreana é conhecida, fenômeno que para muitos ameaça o soft power japonês.

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O orçamento do escritório passou de 19 bilhões de ienes em 2011 para 55 bilhões de ienes no ano passado (algo em torno de R$ 2,6 bilhões), usados para promover o Japão e sua cultura, seja ela contemporânea ou tradicional.

Há ainda o Fundo Cool Japan, uma parceria público-privada lançada em 2013 para investir em negócios que promovam e desenvolvam produtos e serviços japoneses. Desde então, mais de 100 bilhões de ienes (R$ 4,8 bilhões) já foram investidos em aproximadamente 50 projetos.

Até 2018, contudo, o fundo acumulava 10 bilhões de ienes (R$ 478 milhões) em perdas. Se o projeto tem sucesso para impulsionar animes e a culinária, por exemplo, o êxito é menor na música e no cinema, especialmente quando comparado ao da Coreia. Mesmo onde o resultado é positivo, críticos apontam que se deve mais a um interesse orgânico do que à intervenção do governo. Há também quem discorde do foco no soft power em si:

“Os poucos estudos empíricos que tentam medi-lo geralmente mostram impactos muito, muito limitados. E mesmo eles parecem ter efeitos de curto prazo que não são necessariamente ligados à cultura”, disse Leheny.

Espectadores fazem fila ao lado de poster do filme Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba em um cinema em Shinjuku, um dos distritos de Tóquio Foto: Takaaki Iwabu / Bloomberg/31-10-2020
Espectadores fazem fila ao lado de poster do filme Demon Slayer: Kimetsu no Yaiba em um cinema em Shinjuku, um dos distritos de Tóquio Foto: Takaaki Iwabu / Bloomberg/31-10-2020

Soft power em xeque

Para Alexandre Uehara, coordenador do Grupo de Estudos sobre Ásia da Universidade de São Paulo, a percepção internacional da imagem do Japão começou a mudar diante da rápida recuperação econômica no pós-guerra:

— O país conseguiu projetar toda uma imagem já nos anos 1960 a partir da sua tecnologia — afirmou. — A admiração e o consumo das produções culturais também são consequência disso.

Não é à toa que o primeiro grande fenômeno do anime no Brasil vem na década de 1980, com os Cavaleiros do Zodíaco, aponta Mayara Araujo, doutoranda da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Desde então, os desenhos são parte do cotidiano das crianças brasileiras e um gosto passado de pai para filho. Foi o caso do estudante de Química Bruno Ferreira, morador de Sergipe: o jovem de 19 anos foi apresentando aos Cavaleiros do Zodíaco por seu pai, ainda pequeno. Hoje, passa seu apreço por animes para suas irmãs.

— Já adolescente, eu comecei a pesquisar mais, correr atrás de conteúdos diferentes e estudar a língua — contou ele, vestindo uma camisa do anime Demon Slayer.

Quem também aprende japonês é Matheus Ramos, de 25 anos. O designer faz aulas duas vezes por semana desde 2018, é fã de comida japonesa e aficionado por Pokémon:

— Eu conhecia o termo otaku, mas não me identificava— disse, referindo-se à palavra usada para descrever os fãs da cultura pop japonesa. — No curso, conheci outras pessoas parecidas comigo, o que só aumentou meu interesse.

Matheus, que mora em São João de Meriti, na Região Metropolitana do Rio, escolheu o Japão como destino para sua primeira viagem internacional. Estava com as malas prontas para viajar quando a Covid-19 se tornou uma pandemia, e precisou adiar seus planos para 2022.

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Limites da diplomacia pop

O coronavírus, os entrevistados pelo GLOBO concordam, foi um banho de água fria para os planos olímpicos japoneses. Se o objetivo era se relançar para o mundo como uma potência pop e high-tech, hoje se fala apenas do risco de contágio.

— Quando Abe chegou ao Maracanã vestido de Mario, ele deu um sinal claro de que a cultura pop seria um elemento central da Olimpíada — disse Araujo, que faz parte do Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea da UFF. — Agora, cabe ver como vai ser.

Yasushi Watanabe, professor da Universidade Keio, em Tóquio, reconhece que, no âmbito do soft power, a Olímpiada não terá o impacto previsto. Quando o evento foi adiado no ano passado, previa-se que marcasse o triunfo japonês no combate ao vírus, tal qual os Jogos Olímpicos de 1964 simbolizaram o renascimento no pós-guerra.

Com os casos em alta, no entanto, não haverá nem mesmo público nos estádios. E se controlar o contágio é uma prioridade sanitária, aponta Watanabe, é também um imperativo diplomático:

— A Olimpíada de Inverno começa daqui a sete meses em Pequim. A China vai usar qualquer oportunidade que tiver para promover seu sucesso no combate ao vírus como um trunfo do regime.

Se o Cool Japan teve sucesso para mudar a percepção no Ocidente, regionalmente o cenário é outro. Os crimes de guerra e o passado imperialista japonês não raramente se sobrepõem à diplomacia do pop.

Ainda assim, os especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam que as trocas e influências culturais contemporâneas são profundas: os animes são megapopulares na Coreia e vários dos principais grupos de K-Pop gravam hits em japonês.

— Há uma interação cultural saudável entre as gerações mais novas — disse Watanabe.