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Com ascensão da extrema direita, crise na CDU torna incerto futuro da política na Alemanha

Partido de Merkel se vê em encruzilhada após conflito deflagrado por aliança com AfD, enquanto descarta também associação com A Esquerda
Com um cartaz onde se lê “Direitos humanos em vez do pessoal da extrema direita”, alemães protestam em Erfurt, capital da Turíngia, contra a aliança da CDU e FDP com a AfD Foto: JENS SCHLUETER/AFP/15-2-2020
Com um cartaz onde se lê “Direitos humanos em vez do pessoal da extrema direita”, alemães protestam em Erfurt, capital da Turíngia, contra a aliança da CDU e FDP com a AfD Foto: JENS SCHLUETER/AFP/15-2-2020

BERLIM — Tudo parecia encaminhado. Depois de 15 anos no poder, a chanceler Angela Merkel tentaria transformar sua pupila Annegret Kramp-Karrenbauer em sua sucessora, nas eleições do ano que vem. Eleita presidente da União Democrata Cristã (CDU) no final de 2018, Kramp-Karrenbauer, ou AKK, é conhecida como “mini-Merkel” por ser uma política igualmente moderada. No entanto, um terremoto político no início deste mês , além de ter rompido um dos mais típicos hábitos alemães, o de planejar as coisas com muita antecedência, minou também as pretensões de Merkel.

Kramp-Karrenbauer renunciou duas vezes . Deixou tanto a presidência do tradicional partido conservador como a possibilidade de disputar a cadeira de Merkel. O motivo: a participação da CDU, em aliança com a extrema direita , na eleição de Thomas Kemmerich , do Partido Democrático Liberal (FDP), para governar o pequeno estado da Turíngia, de pouco mais de 2 milhões de habitantes, no Leste da Alemanha.

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Até então, a ordem da líder da CDU era clara e havia sido propagada aos quatro ventos: a CDU jamais cooperaria nem com a ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) nem com a legenda A Esquerda , sucessora do antigo Partido Comunista da antiga Alemanha Oriental. Na Turíngia, contudo, não houve obediência . A aliança entre CDU, AfD e FDP, no dia 5 de fevereiro, foi desfeita um dia depois, quando Kemmerich renunciou — embora permaneça no cargo até a escolha de um sucessor. O estrago, porém, já estava feito.

A perda de autoridade de AKK na CDU, principalmente sobre a ala mais conservadora, conhecida como “União de valores” ( Werteunion , em alemão) e que é forte nos estados do Leste, e a impressão de que ela subestimou o que estava por vir não lhe deram escolha. Agora, ela continua apenas como ministra da Defesa.

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A desistência de AKK não só desestabilizou a política da quarta maior economia do planeta, mas desnorteou as lideranças da CDU . Como lidar com a influência da AfD, que abriga simpatizantes do nazismo, na política de um país que exterminou seis milhões de judeus e luta para manter viva a memória de seus erros? Mais: como evitar a extrema direita que cresce sem também admitir alianças com A Esquerda , diante de resultados eleitorais que resultam em um Parlamento nacional e em Legislativos regionais cada vez mais fragmentados?

Merkel, que estava na África do Sul quando a crise na Turíngia ocorreu, não demorou a ir ao microfone : a cooperação com a extrema direita era “imperdoável”, mas “não interfere na maneira como a CDU pensa”. Há controvérsias, porém. Cada vez mais, membros locais de partidos como CDU e FDP tentam resgatar os votos que perderam para a ultradireita, seja abraçando o discurso anti-imigração ou projetando-se como conservadores convictos.

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Medo de virada extremista

Embora o também tradicional Partido Social-Democrata (SPD), que integra com a CDU a coalizão federal liderada por Merkel, tenha se aberto a alianças com A Esquerda em prefeituras e governos estaduais, o veto da CDU permanece. Enquanto a AfD é acusada de propagar um discurso de ódio em meio ao aumento de atentados contra imigrantes e judeus, A Esquerda é descrita como remanescente do regime autoritário soviético e simpática a ditaduras de esquerda. Em 2018, o diretório nacional da CDU divulgou uma carta proibindo seus membros de colaborarem tanto com a Esquerda como com a AfD.

Tal proibição, escreveu Karin Prien , secretária de Educação do estado de Schleswig-Holstein e membro da CDU, é “a raiz de todo o mal”. Segundo ela, a equidistância coloca no mesmo balaio políticos como o respeitável Bodo Ramelow, da Esquerda, ex-governador da Turíngia que perdeu para Kemmerich na eleição do início do mês, e Björn Höcke, líder da AfD no mesmo estado e tido como o mais radical dos políticos da extrema direita alemã. Roberto Habeck , líder dos Verdes, também disse que a CDU deve “mudar seu pensamento e reconhecer que os extremistas fascistas de direita não são o mesmo que A Esquerda”.

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— O argumento não é que os dois partidos sejam de alguma forma equivalentes, mas sim que ambos, aos olhos de importantes membros da CDU, não estão totalmente comprometidos com os princípios centrais da formação política, social e econômica da Alemanha — explicou ao GLOBO o cientista político Klaus Goetz , da Universidade Ludwig Maximilian de Munique (LMU). — A postura ideológica de cada um é vista como incompatível com a Constituição alemã.

Goetz credita a políticos locais apenas a cooperação do partido de Merkel com extremistas.

— Não vejo qualquer membro da CDU com qualquer posição de destaque ser favorável ao trabalho com a AfD, mas está claro que há muito mais sobreposição entre os eleitores da CDU e da AfD do que entre os eleitores da CDU e da Esquerda, que são muito diferentes. Por isso, a questão sobre o que fazer com a AfD é mais premente para a CDU.

O medo de uma virada extremista na política alemã paira sobre o futuro. O que aconteceu na Turíngia pode se repetir, por exemplo, na Alta Saxônia, cujas eleições acontecem no ano que vem.

— O apoio da extrema direita para eleger o governo na Turíngia é prejudicial para a democracia porque partes importantes da AfD são fundamentalmente hostis à concepção de uma democracia liberal pluralista. É difícil proibir visões antidemocráticas, mas essa cooperação as torna aceitáveis — diz Goetz.

Favoritos na disputa

Com a presidência da CDU vaga, nomes para preencher o vácuo deixado por AKK não demoraram a surgir. Até agora, segundo uma pesquisa interna, Norbert Röttgen, ex-ministro do Meio Ambiente, e Friedrich Merz, que em 2018 perdeu o posto para AKK, são os favoritos. O governador do estado da Renânia do Norte-Vestfália, Armin Laschet, e o ministro da Saúde, Jens Spahn, também são cogitados, embora só Röttgen tenha declarado oficialmente a intenção de disputar tanto o comando da CDU quanto a cadeira de chanceler em 2021.

A depender da escolha, o mandato de Merkel corre o risco de terminar antes do prazo. Caso o novo líder da CDU não esteja alinhado com o SPD, por exemplo, a coalizão que governa o país poderia ser rompida e as eleições, antecipadas. Alexander Mitsch, líder da “União de Valores”, que chegou a ser chamada dentro do partido de “fã-clube da AfD”, já sinalizou apoio às candidaturas de Merz e Spahn.

Merkel, contudo, só sai do governo por iniciativa própria ou por iniciativa da maioria do Parlamento de 709 cadeiras. Caso ela deixe o cargo e não haja consenso para escolha de um novo chanceler, são convocadas novas eleições em até 60 dias.