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Com aumento de confrontos em protestos, prefeito de Cali declara estado de emergência

Das 24 mortes ocorridas desde o início dos protestos na Colômbia, a maioria foi na cidade, conhecida como 'a capital do pós-conflito' com as Farc; ONGs denunciam que 379 pessoas estão desaparecidas
Manifestantes acendem velas pelos mortos em Cali, na Colômbia, no oitavo dia de protestos Foto: LUIS ROBAYO / AFP
Manifestantes acendem velas pelos mortos em Cali, na Colômbia, no oitavo dia de protestos Foto: LUIS ROBAYO / AFP

O prefeito de Cali, epicentro dos protestos que tomaram a Colômbia há mais de uma semana e deixaram ao menos 24 mortos , declarou estado de emergência na cidade por três meses, prazo que pode ser prorrogado. Segundo o decreto do prefeito Jorge Iván Ospina, a medida foi tomada para “satisfazer as necessidades da população e fortalecer as ações que visam a proteção dos moradores de Cali”.

A violência dos protestos contra o governo colombiano estourou na cidade de 2,2 milhões de habitantes, uma das mais pobres do país, chamada de “capital do pós-conflito” e onde o acordo de paz assinado com a ex-guerrilha das Farc, em 2016, não trouxe a calma esperada. Desde o início das manifestações contra a proposta de reforma tributária apresentada pelo presidente Iván Duque — já retirada da pauta no Congresso —, a cidade registrou vários distúrbios, que foram duramente reprimidos pelas forças de segurança.

— Há fortes boatos nos últimos dias de que a medida seja o primeiro passo para que o governo decrete estado de comoção interior [estado de sítio] no país, o que daria muito poder a Duque e levaria a uma situação perigosa —  explica Oscar Hemberth, historiador e jornalista colombiano. — Com isso, a polícia passaria a ter poder total contra os manifestantes.

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De acordo com a Defensoria pública, que contabilizou as 24 mortes nos protestos, 17 delas ocorreram no departamento (estado) de Valle del Cauca, onde fica Cali. Kevin Agudelo, de 22 anos, foi uma das vítimas. Ele participou, na segunda-feira, de um ato em Siloé, uma favela da cidade. Sua mãe lembra que ele prometeu não chegar perto dos “tumultos”. Foi a última vez que ela o viu vivo.

— Ele me disse que iria marchar pelo bem-estar da Colômbia — diz Angela Jiménez, entre soluços, à AFP.

De acordo com 12 depoimentos coletados pela agência, a tropa de choque e as forças especiais atacaram o protesto pacífico. Agudelo foi morto junto com duas pessoas, todas baleadas, segundo comprovam fotos e vídeos publicados nas redes sociais.

Daniela León também foi pega no meio de confrontos entre as forças de segurança e manifestantes que tentavam tomar um pedágio em Palmira. De acordo com ela, os manifestantes começaram a correr para os canaviais da região para se proteger do gás lacrimogêneos. Dezessete pessoas que fugiram continuam desaparecidas, segundo León.

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Na noite desta quinta, a ONG Unidade de Busca de Pessoas Desaparecidas da Colômbia, além de 26 grupos de defesa dos direitos humanos, apontaram que o número de desaparecidos é de 379, muito acima dos 89 declarados nesta semana pela Defensoria Pública, dos quais 47 já localizados. As organizações apontam que 471 pessoas foram consideradas desaparecidas desde o início dos atos, das quais 92 foram localizadas.

Os grupos de direitos humanos denunciam ainda as táticas usadas pelos agentes de segurança, que incluem tiros com arma de fogo diretamente contra manifestantes, corte de energia elétrica, helicópteros jogando gás lacrimogêneo de maneira aleatória em casas e estabelecimentos comerciais e até denúncias de abusos sexuais.

Pressionado, o governo pediu nesta quinta-feira um diálogo entre “aqueles que marcham” e “aqueles que não marcham” nos protestos.

As conversas começaram na quarta-feira, mas ainda não incluíram os líderes das manifestações, agrupados no chamado Comitê Nacional de Greve. Até agora, o conselheiro presidencial Miguel Ceballos, mediador pelo lado do governo, se encontrou com representantes de órgãos de controle, do Ministério Público, da Procuradoria Geral e de alguns sindicatos.

— Devemos ouvir todos os setores, mas o país também deve ouvir o governo. Isso inclui quem marcha, mas também quem não marcha —  disse Ceballos, que garantiu que se reunirá com os líderes dos protestos na segunda-feira, em um local fora da sede da Presidência e reservado, para confirmar a participação de Duque.

Aumento da desigualdade

Em Cali, epicentro dos protestos, a pobreza atinge 36,3% da população e a taxa de homicídios hoje é de 43,2 mortes por 100 mil habitantes, bem acima da média nacional de 23,79  por 100 mil habitantes. Com o fim do conflito armado com as Farc, a cidade recebeu milhares de camponeses pobres que não foram integrados plenamente. A situação foi agravada pela crise econômica desencadeada pela pandemia — que afetou a indústria, o comércio e a agricultura.

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— Cali é uma cidade pobre, com forte histórico de movimentos sociais, e historicamente mais próxima à esquerda do que o restante do país — explica  Katherine Aguirre, pesquisadora associada do Instituto Igarapé, que vive na cidade. — Essa movimentação social radicalizada é uma forte resposta às desigualdades. —  Nos últimos dias, foram intensas as negociações para reduzir o conflito, com mediação de ONGs e da Igreja Católica.

O governo respondeu aos protestos e bloqueios de estradas, que provocaram desabastecimento de gasolina e de medicamentos em meio à pandemia, militarizando a cidade com cerca de 700 soldados, 500 homens do Esquadrão Móvel da Polícia Antimotim (Esmad), além de 1.800 policiais e dois helicópteros.

Dois dias antes de decretar emergência, o prefeito Jorge Iván Ospina  — que enfrenta acusações de corrupção por eventos virtuais contratados em dezembro do ano passado — convocou embaixadores e representantes de organizações com sede em Bogotá e pediu que ajudassem a resolver a situação.

— Com a justificativa do decreto de emergência, Ospina poderia agora contratar empresas sem passar por licitações —alerta Hemberth.

Segundo autoridades, nos bairros mais pobres e nas favelas, gangues armadas conhecidas como “combos” vêm atacando as forças de segurança, e já deixaram 176 soldados feridos, dez deles por arma de fogo. O patrulheiro Luis Guerra, do esquadrão de choque, quase perdeu o pé devido à explosão de um artefato explosivo, no primeiro dia de protestos, na semana passada.

— Um grupo de uns cem manifestantes violentos vinha por outra rua, longe do que era a manifestação pacífica, encapuzados, cobrindo o rosto, jogando objetos pontiagudos, artefatos conhecidos como batatas-bomba — disse o agente, que foi hospitalizado, à AFP.

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Várias delegacias e um hotel também foram atacados a tiros, segundo a prefeitura. Ativistas acreditam, no entanto, que infiltrados possam estar por trás dos incidentes.

— Fontes indicam que grupos paramilitares, da extrema direita da Colômbia, estão indo de cidade a cidade, assassinando líderes de grupos sociais —  afirma Hemberth, o historiador colombiano.

A ONU, a União Europeia, os Estados Unidos e organizações de direitos humanos condenaram os abusos da polícia durante as manifestações. Durante uma entrevista coletiva virtual para jornalistas nesta quinta-feira, o ministro da Defesa, Diego Molano, atribuiu o “vandalismo” nas ruas aos dissidentes das Farc que se afastaram do acordo de paz, e a integrantes do Exército de Libertação Nacional (ELN), última guerrilha ativa na Colômbia.

— Se houve uso excessivo da força, que haja responsabilização — disse o ministro do Interior, Daniel Palacios.

Até agora, no entanto, nenhum alto funcionário do governo condenou o comportamento da polícia, embora a Procuradoria Geral da República tenha aberto investigações contra 30 membros da força pública. O governo, ao contrário, vem parabenizando, em vídeos, militares e policiais de alto escalão e instando-os a continuar seu trabalho.