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'Com o fim do conflito com as Farc, outros problemas ficaram evidentes na Colômbia', diz pesquisadora

Para Katherine Aguirre, economista associada do Instituto Igararapé, a maior marcha do país em décadas aconteceu na esteira dos movimentos latino-americanos
Manifestantes protestam contra reformas do presidente Iván Duque em Medellin, na Colômbia Foto: JOAQUIN SARMIENTO / AFP
Manifestantes protestam contra reformas do presidente Iván Duque em Medellin, na Colômbia Foto: JOAQUIN SARMIENTO / AFP

Histórica, a marcha que levou centenas de milhares de pessoas às ruas da Colômbia na quinta-feira e registrou panelaços incomuns no país foi uma resposta à posição do presidente Iván Duque, que tentou invalidar os protestos antes mesmo que eles acontecessem, acredita Katherine Aguirre, pesquisadora associada do Instituto Igarapé. Para a economista colombiana, a marcha veio na esteira de movimentos semelhantes em outros países sul-americanos. A união de grupos com pautas diferentes também foi facilitada pelo acordo de paz com as Farc, que tirou a polarização e o peso da guerra civil de cima dos movimentos sociais.

A Colômbia não tem um histórico recente de protestos. Por quê?

É verdade. Somos um país onde a sociedade civil é relativamente passiva. Obviamente o tema do conflito armado [com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, Farc ) atraía todos os outros temas sociais ao redor dele. Nas últimas décadas, houve dois grandes protestos: uma manifestação maciça contra as Farc e outra para ratificar a necessidade do processo de paz. Nunca vivemos uma sequência de manifestações que durassem mais de um mês, como está acontecendo no Chile, por exemplo.

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Os protestos nos países vizinhos, como Chile, mas também Bolívia e Equador, influenciaram?

Sim, a marcha veio na esteira dos movimentos latino-americanos. Claro, há também muito inconformismo com o governo . Mas ela foi impulsionada pelos processos regionais, porque os colombianos viram ali uma oportunidade de mobilizar a sociedade civil em um tema fora do conflito armado. Com o fim do conflito com as Farc, outros problemas começaram a ficar mais evidentes.

O que levou a uma manifestação tão grande e histórica?

A ideia da marcha nasceu após vários passos em falso do governo de Iván Duque . Eu diria que o estopim foi um bombardeio [a um grupo dissidente das Farc] no qual oito crianças morreram. Tudo começou ali. E a manifestação se amplificou através da rejeição do governo a ela, quando Duque começou a invalidar as causas do protesto, a pôr militares nas ruas respondendo a algo que ainda nem havia acontecido. Foi uma bola de neve: quanto mais o governo rejeitava a manifestação, mais as pessoas rejeitavam o governo. Antes mesmo dos protestos começarem, Duque já chamava os manifestantes de vândalos. Foi uma atitude muito agressiva. Por isso a resposta foi tão maciça. Duque se fechou, não quis se abrir ao diálogo, e uma marcha que poderia ser pequena aumentou enormemente.

'Cacerolazo' começou com pronunciamento do presidente Iván Duque na TV
'Cacerolazo' começou com pronunciamento do presidente Iván Duque na TV

Os panelaços também não são comuns no país, certo?

Foi histórico. Eu tenho 37 anos e nunca havia ouvido um panelaço na Colômbia . É um símbolo claro de inconformismo, que mostra que mesmo quem não esteve na rua estava mobilizado, em suas casas. E se a resposta de Duque continuar a ser fechar os olhos, dar as costas aos manifestantes e não abrir espaço para debates, os panelaços e manifestações continuarão acontecendo.

Quais são as demandas da população? Muitos protestam contra reformas que nem sequer foram anunciadas.

São principalmente demandas de ordem econômica, sobre projetos de reformas previdenciária e trabalhistas. São reformas que realmente não passaram, propostas que não se materializaram, mas existem projetos nesse sentido. É uma rejeição a um governo muito de direita, e que, principalmente, abandonou o processo de paz, deixou líderes sociais vulneráveis e sem proteção, e que tem uma política externa ambiental contrária ao que pensa a maioria dos colombianos.

Muitos estudantes estiveram à frente das marchas em várias cidades, e a wiphala, símbolo dos povos andinos, esteve muito presente nas ruas. Esse movimento tem liderança?

Os estudantes são um dos grupos da sociedade civil colombiana mais organizados, assim como os grupos de vítimas [do conflito com as Farc] e os sindicatos. Além disso, como o conflito na Colômbia atravessa as zonas rurais, os indígenas sempre estiveram nesse processo de luta. Agora em outros temas.

Houve vandalismo nos protestos?

Foi a maior marcha dos anos recentes, com muitas manifestações e atividades culturais. Depois de um dia de uma marcha pacífica e maciça na maioria das cidades, houve desordem social e uma forte resposta por parte do Estado. Em Bogotá, houve muita repressão ao movimento estudantil. Em Cali, após os protestos, aconteceram saques em vários barrios, e a cidade ficou sitiada, uma espécie de pânico coletivo. Muitos vizinhos organizaram grupos de autodefesa armados. Atos que são consequência, principalmente,  do problema da desigualdade social. Vivemos um país que se fechou por muito tempo no tema do conflito armado e não nos problemas sociais, e essa bomba explodiu. Agora, nos demos conta de que vivemos numa sociedade muito violenta e armada, disposta a se defender de um inimigo que não sabemos quem é.