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Com maioria conservadora, Suprema Corte dos EUA sinaliza intenção de limitar direito ao aborto

Tribunal analisou os argumentos orais referentes à constitucionalidade de uma lei do Mississippi; veredicto é esperado no meio de 2022
Ativistas pró e contra o aborto protestam no lado de fora da Suprema Corte americana Foto: EVELYN HOCKSTEIN / REUTERS
Ativistas pró e contra o aborto protestam no lado de fora da Suprema Corte americana Foto: EVELYN HOCKSTEIN / REUTERS

A Suprema Corte dos Estados Unidos analisou nesta quarta-feira os argumentos orais de um processo sobre a constitucionalidade de uma lei do estado do Mississippi que busca banir o aborto após a 15ª semana. O tribunal, com uma supermaioria de seis juízes conservadores contra três progressistas, sinalizou que concorda ao menos em parte com a legislação, pavimentando o caminho para limitar o acesso ao procedimento em território americano.

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Desde que o tribunal determinou, em 1973, o direito constitucional ao aborto, o assunto se tornou um dos mais acalorados e polarizantes entre os americanos. Os desafios à decisão, conhecida como Roe contra Wade, são perenes, mas há décadas não se vê uma ameaça tão contundente quanto a atual.

O veredicto só virá no meio de 2022, mas a incógnita neste momento parece ser sobre limitar-se  às 15 semanas especificadas pela lei do Mississippi, bloqueada por instâncias inferiores, ou abordar a jurisprudência como um todo. Caso o precedente seja revertido, o tribunal abrirá caminho para leis estaduais que restringem duramente o acesso ao aborto, banindo-o quase de imediato em 12 estados.

O que está em jogo é a cláusula da viabilidade fetal, reforçada por uma decisão de 1992 que endossou Roe contra Wade: segundo ela, o aborto só pode ser proibido quando o feto é capaz de sobreviver fora do útero, o que ocorre ao redor da 24 a semana de gestação. Logo, a lei do Mississippi, que abre raras exceções para emergências médicas, vai na contramão da jurisprudência.

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Os três juízes mais conservadores, Samuel Alito, Clarence Thomas e Neil Gorsuch, indicaram que são favoráveis a ir além e reverter por completo a decisão de 1973. Brett Kavanaugh também deu indícios de caminhar nesta direção, listando decisões históricas que reverteram precedentes importantes. O tribunal, ele disse, deve ser "escrupulosamente neutro” sobre tópicos que não ficam claros na Constituição.

Amy Coney Barrett, que chegou à Corte há pouco mais de um ano nomeada pelo então presidente Donald Trump, sinalizou que reverter precedentes é por vezes justificável, mas indagou se a “reação pública” deveria ser um fator na decisão. O mais moderado entre os conservadores, John Roberts, demonstrou que seria favorável a um veredicto mais limitado, favorável à lei do Mississippi, mas sem decidir diretamente sobre a viabilidade fetal:

— A questão hoje em nossa frente são as 15 semanas — disse ele, afirmando que as 15 semanas, contadas a partir da última menstruação, não são “um distanciamento drástico” das regras atuais.

Ao que tudo indica, contudo, Roberts precisará convencer ao menos outros dois magistrados nomeados por presidentes republicanos de que sua opinião deve prevalecer.

Os três juízes progressistas deixaram claro que consideram a legislação do estado sulista inconstitucional. Segundo Stephen Breyer, uma decisão que reverta Roe contra Wade “subverteria sem dúvidas a legitimidade da Corte”. Elena Kagan e Sonia Sotomayor concordaram, indicando o tom político do processo. Questionado sobre o assunto nesta quarta, o presidente dos EUA, Joe Biden, também disse ser favorável à manutenção da jurisprudência pró-aborto.

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EUA pós-Roe

O processo analisado pelo tribunal, cujo nome oficial é Dobbs contra Jackson Women’s Health — a única clínica que ainda realiza abortos no Mississippi — não é isolado. Entre 1973 e 2021, segundo o Instituto Guttmacher, organização que estuda e defende os direitos reprodutivos, os estados americanos aprovaram mais de 1,3 mil restrições ao procedimento. Apenas neste ano já foram mais de 100, um recorde histórico.

As medidas aprovadas por Legislativos estaduais republicanos são, em sua maior parte, derrubadas por tribunais de apelação que apontam sua inconstitucionalidade. O aumento de volume nos últimos meses, contudo, não é coincidental: veio após a chegada de Coney Barrett ao tribunal, em substituição a  Ruth Bader Ginsburg, bastião progressista e defensora do direito ao aborto, que havia morrido um mês antes.

Assim, formou-se a supermaioria conservadora de seis juízes, um terço deles indicado por Trump — Coney Barrett, Gorsuch e Kavanaugh — que prometia só selecionar juízes “pró-vida”, expressão adotada pelos ativistas antiaborto, já de olho em derrubar Roe contra Wade. O apoio do trio foi crucial para que a Suprema Corte se recusasse a bloquear uma lei do Texas que veta o aborto em praticamente todos os casos , formulada para que fosse mais difícil de ser questionada judicialmente.

Uma decisão que derrube o marco legal de 1973 possivelmente causará uma divisão geográfica no direito ao aborto nos EUA: a interrupção da gravidez continuará acessível em estados progressistas, como Nova York ou a Califórnia, mas será imediatamente dificultado em 26 estados, principalmente no Meio-Oeste e do Sul. Texas e Mississippi estão entre as 12 unidades federativas em que ele seria revertido quase de imediato.

Com isso, as mulheres precisariam viajar para outras partes do país — em 15 estados, há leis que protegem os direitos ao aborto — ou então se submeter a procedimentos ilegais, que põem em risco suas vidas. Segundo uma pesquisa de junho do instituto Ipsos, 52% da população americana concordam que o procedimento deveria ser legal em todos ou quase todos os casos, contra 35% que dizem o contrário.

A estimativa é de que, até os 45 anos, uma em cada quatro mulheres americanas realize um aborto.

Mais afetadas

Segundo os dados mais recentes do Centro de Prevenção e Controle de Doenças, mais de 93% dos abortos realizados no Mississippi foram antes da 14ª semana de gestação, e 75% deles foram antes das 10 semanas — nacionalmente, 93% dos abortos ocorrem antes da 13 a semana. A própria Jackson Women’s Health só realiza o procedimento até a 16ª semana, limitada por várias restrições.

O impacto, ainda assim, seria significativo, principalmente entre as mulheres mais vulneráveis e para gravidezes de risco, disse ao GLOBO Mary Ziegler, professora de Direito da Universidade do Estado da Flórida e especialista em direitos reprodutivos:

— Quando a Suprema Corte diz que a viabilidade fetal não é o parâmetro, não vamos parar em 15 semanas. É provável que seja apenas uma parada até o veto — afirmou ela, que tem vários livros escritos sobre o assunto. —  Mas as mulheres que buscam abortos após a 15 a semana semana são, no geral, uma combinação daquelas que descobrem que o bebê tem alguma condição que impede a vida fora do útero ou que a gestação põe em risco a vida da gestante.

Segundo Ziegler, há ainda um outro grupo que será prejudicado: mulheres pobres que precisam juntar dinheiro para custear o procedimento, já que nos EUA não há um sistema de saúde público. Em muitos casos, precisam encontrar alguém para cuidar das crianças, tirar folga de trabalhos que pagam por hora e viajar até a clínica mais perto — problema que se acentuará caso Roe contra Wade seja amenizada ou revertida. (Com New York Times)