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Com vacância de poder após renúncia de Morales, Bolívia vive dia de confrontos nas ruas

Forças Armadas anunciam patrulhas em conjunto com a polícia para conter 'grupos de vândalos'; em meio a novos incidentes de violência, Morales pede calma a seus partidários
Manifestantes pró-Morales bloqueiam uma rua de El Alto, cidade vizinha a La Paz que é reduto eleitoral do presidente demissionário Foto: AIZAR RALDES / AFP
Manifestantes pró-Morales bloqueiam uma rua de El Alto, cidade vizinha a La Paz que é reduto eleitoral do presidente demissionário Foto: AIZAR RALDES / AFP

LA PAZ —  A renúncia de Evo Morales na tarde de domingo — sob pressão dos militares, da polícia e da oposição — deixou  um vazio de poder na Bolívia, enquanto crescem os confrontos nas ruas do país entre apoiadores do presidente demissionário e opositores. As autoridades da cadeia sucessória, começando pelo vice-presidente Álvaro García Linera e pelos presidentes e vice-presidentes da Câmara e do Senado, todos integrantes do MAS (Movimento ao Socialismo) de Morales, também abandonaram seus cargos, levantando questionamentos sobre quem assumiria o poder.

A sucessão foi reivindicada pela segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, parlamentar de oposição a Morales. Nesta segunda-feira, ela viajou do departamento (estado de Beni) para El Alto, cidade vizinha a La Paz, de onde foi levada em um helicóptero da Força Aérea para uma academia militar. De lá, foi levada à Assembleia Legislativa Plurinacional, o Congresso boliviano, que precisa aceitar formalmente a renúncia de Morales e indicar seu sucessor.

Ao chegar ao local, a senadora anunciou a convocação de uma sessão nesta terça-feira para discutir o tema. Emocionada, ela evocou a Bíblia e anunciou que, “com a bênção de Deus”, os movimentos que se apropriaram das manifestações “serão os protagonistas” do processo.

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— Queremos apenas a democracia e segurança. A bandeira tricolor (da Bolívia) significa unidade. Esperamos dar alguma certeza a esse país — disse a senadora, que afirmou que seu principal objetivo seria a convocação de eleições. —  Vamos convocar eleições com personalidades comprovadas, que realizem um processo eleitoral que reflita o desejo e o sentimento de todos os bolivianos. Acho que a população grita para que em 22 de janeiro já tenhamos um presidente eleito — continuou, referindo-se à data da posse do presidente eleito no pleito em 20 de outubro, no qual a vitória de Morales foi contestada.

O problema é que tanto na Câmara quanto no Senado o MAS de Morales tem a maioria absoluta, e nada poderá ser aprovado sem o  voto do partido. Para complicar a situação, o recrudescimento dos confrontos que ocorrem há  três semanas ameaça impedir o Congresso de se reunir. Segundo fontes parlamentares, os opositores estariam cogitando transferir a sessão desta terça para Sucre, a capital administrativa do país.

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Sem a presença da polícia, que se amotinou contra Morales, La Paz amanheceu com rastros de destruição devido a confrontos ocorridos durante a noite. A violência foi tamanha que o chefe da polícia,Vladimir Yuri Calderón, que no domingo havia pedido a saída do presidente, anunciou sua renúncia na manhã desta segunda-feira.

Ao longo do dia, os confrontos continuaram, em especial na cidade de El Alto, próxima a La Paz e um dos principais redutos eleitorais de Evo Morales. Milhares de moradores de El Alto estão marchando em direção à capital, apesar das muitas barricadas em estradas e ruas montadas por defensores da renúncia do agora ex-presidente, e da presença de veículos blindados do Exército. Em resposta a um pedido de ajuda feito pela polícia, o comandante das Forças Armadas anunciou que iria realizar operações conjuntas contra " grupos de vândalos ", sem detalhar exatamente quem seriam esses grupos. Na véspera os militares haviam "sugerido" a renúncia de Morales supostamente porque não queriam reprimir a própria população.

Testemunhas dizem que os militares estão usando munição letal contra os manifestantes — segundo os relatos, um confronto de grandes proporções vai se tornando inevitável.  Um dos gritos da multidão é " agora sim, guerra civil ". A imprensa local fala em cerca de 20 feridos. No Twitter, Morales fez um chamado pelo diálogo e pediu para que seus partidários não recorram à violência .

Ao mesmo tempo, o ex-presidente Carlos Mesa, que disputou a contestada eleição contra Evo Morales, foi ao Twitter denunciar que uma multidão estava seguindo em direção à casa dele, com o intuito de destruir o local. No fim do dia, a polícia pediu a intervenção dos militares para controlar a violência.

No domingo, Evo Morales disse que sua casa e a casa de sua irmã foram alvo de saques e incêndio e que seus ministros receberam ameaças de morte. Na internet, circulam vídeos que mostram opositores dentro de um imóvel que seria a casa do presidente demissionário em Cochabamba. Ao menos dois ex-ministros também tiveram suas casas saqueadas.

As casas da jornalista Casimira Lema, da Televisión Universitária, e de Waldo Albarracín, reitor da Universidade Mayor de San Andrés e dirigente do Conselho Nacional de Defesa à Democracia, foram incendiadas. Albarracín, opositor do antigo governo, culpou apoiadores de Morales.

Ao menos 64 ônibus foram queimados durante a noite em uma garagem na capital, enquanto diversas farmácias e mercados foram alvos de saque. A embaixada da Venezuela na capital também foi tomada por grupos “encapuzados” que portavam dinamites, segundo a chefe da missão, Crisbeylee González. Uma fazenda avícola foi alvo de saques, motivados por notícias falsas de que pertenceria a Camacho. Delegacias no estado de Cochabamba também foram alvo de pedradas e invasões.

Estratégias diferentes

Diante do impasse políticos, os dois principais líderes do movimento opositor   —  o ex-presidente Carlos Mesa , que ficou em segundo lugar na contestada eleição presidencial de outubro, e o empresário Luis Fernando Camacho , líder do Comitê Cívico do departamento (estado) oriental de Santa Cruz  — têm defendido estratégias diferentes.

Camacho, que radicalizou os protestos ao iniciar uma campanha pela  renúncia de Morales e o amotinamento de policiais e militares, vinha pedindo a renúncia de todos os parlamentares do MAS. Se sua demanda se concretizasse, o Legislativo não poderia se reunir, dificultando uma possível saída constitucional. No domingo, ele falou da possibilidade de formar uma “junta de governo” com os comitês cívicos e o comando militar. Nesta segunda, porém, Camacho voltou atrás e publicou um vídeo para, segundo ele, mostrar à "comunidade internacional" que não houve golpe. No vídeo, ele afirmou que a transição para um novo governo seria "democrática e constitucional".

Mesa já vem trabalhando intensamente para reunir o Congresso, e pediu aos policiais e manifestantes que estão nas ruas que permitam a chegada dos parlamentares. Em entrevista, ele defendeu que os parlamentares do MAS não sejam expulsos, pois sua presença na Assembleia Legislativa Plurinacional permitirá uma “saída democrática para o país”. Ele também defendeu que o que ocorreu na Bolívia “não constitui um golpe de Estado” porque "Morales deixou o governo porque não podia mais conduzir o país, porque a população lhe negava apoio".

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Morales, por sua vez, criticou a oposição, afirmando que seus líderes têm a responsabilidade de promover a pacificação no país, chamando Mesa e Camacho de “discriminadores e conspiradores” que “entrarão para a História como racistas e golpistas”.

"Renúncia forçada"

Nesta segunda-feira, o Parlamento divulgou a carta de renúncia do presidente demissionário, entregue no domingo, na qual ele afirma que foi uma "renúncia forçada", "fruto de um golpe de Estado político, cívico e policial" e que representa o início da resistência "dos humildes, os trabalhadores, os aimarás e quéchuas e indígenas de terras baixas".

Na carta, Morales indica que, com a decisão, busca “evitar” a violência e expressa seu desejo para a volta da  “paz social”. “Minha responsabilidade como presidente indígena e de todos os bolivianos é evitar que os golpistas continuem perseguindo meus irmãos e irmãs, dirigentes sindicais, maltratando e sequestrando seus familiares”, diz um trecho do documento. “Para evitar todos esses acontecimentos violentos e que volte a paz social, apresento minha renúncia.”