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Com violência recorde, México desiste de tutela militar para segurança pública

Especialistas criticam falta de coordenação entre corporações e de hierarquia

Exército nas ruas. Soldados fazem a segurança na cena do crime após um homem ter sido morto a tiros por assaltantes em Ciudad Juárez em fevereiro
Foto: JOSE LUIS GONZALEZ / REUTERS
Exército nas ruas. Soldados fazem a segurança na cena do crime após um homem ter sido morto a tiros por assaltantes em Ciudad Juárez em fevereiro Foto: JOSE LUIS GONZALEZ / REUTERS

CIDADE DO MÉXICO — Foram pelo menos cinco alterações no projeto inicial, mas, após idas e vindas, a segurança pública não será militarizada no México , como temiam muitos especialistas em segurança pública. Ou quase isso. Ao aprovar um projeto modificado para criação da Guarda Nacional, semana passada, a Câmara de Deputados do país deu luz verde para a formação de uma força sob tutela de um comando civil e não militar, como propunha inicialmente o novo presidente Andrés Manuel López Obrador . A Guarda Nacional , no entanto, será híbrida e composta, na prática, por 150 mil membros, entre militares e civis. Agora, especialistas preveem outros problemas: a falta de coordenação entre as corporações policiais e a ausência de uma estrutura hierárquica na força.

Violência recorde

Durante a campanha, López Obrador, eleito no ano passado, prometeu implantar uma estratégia de pacificação, que incluía, dentre outras medidas, a criação de uma controversa Guarda Nacional militarizada, com dezenas de milhares de soldados. Isso em um país em que especialistas acreditam que a participação do Exército na luta contra as drogas contribuiu para uma vertiginosa onda de violência a partir de 2006 — ano em que as Forças Armadas foram às ruas, agindo sem enquadramento legal.

O novo projeto determina o caráter civil da Guarda, que responderá à Secretaria de Segurança e não mais à pasta da Defesa, como previa o rascunho do texto. A intervenção da Polícia Militar também deverá ser regulada, fiscalizada e limitada ao prazo máximo de cinco anos. Além disso, nenhum integrante da Guarda, mesmo os do Exército, poderá ser julgado por um tribunal militar. Também não serão autorizados a utilizar armamento exclusivo das Forças Armadas.

Mas especialistas apontam falhas no novo formato, que foi aprovado sem que fossem definidas questões importantes como a estrutura hierárquica da força, por exemplo.

— São cerca de 1.800 corporações municipais que não se comunicam, o que pode ser um problema para o sucesso da Guarda Nacional. Ou seja, criou-se um novo órgão sem que fosse resolvido o problema central das capacidades das polícias municipais — afirmou ao GLOBO o analista de segurança Alejandro Hope. — Além disso, muitas definições importantes, como a estrutura hierárquica e o sistema de promoções, ainda deverão ser discutidas.

David Ramírez de Garay, coordenador da área de segurança da ONG México Evalúa, também cita os recursos insuficientes alocados para a polícia, sobretudo pelos municípios.

— Acabamos de sair de um período de seis anos em que o governo não foi capaz de reverter problemas como o baixo investimento em policiamento, principalmente em escala municipal — destacou Garay.

A aprovação da medida, com 463 votos favoráveis, um contrário e nenhuma abstenção, reflete a grave crise de segurança do país após o ano oficialmente mais violento registrado no México, com um cômputo de 34.202 assassinatos em 2018 (entre homicídios dolosos e feminicídios), um aumento de 15% em relação a 2017. Em janeiro deste ano, já sob o novo governo, os números continuaram a subir: os homicídios dolosos aumentaram em 17 dos 32 estados e, no total, foram registradas 2.928 mortes, uma média de 94 pessoas assassinadas por dia.

As cifras, no entanto, podem ser ainda mais alarmantes. Sob a tutela do partido Morena, de López Obrador, o novo governo da Cidade do México acusou a administração anterior de classificar erroneamente milhares de delitos, a fim de simular uma queda de criminalidade — uma prática que pode ter se estendido a diversos estados, avaliam especialistas.

Apenas na capital, a procuradoria-geral de Justiça local informou ter reclassificado mais de 29 mil crimes, que haviam sido erroneamente catalogados pelo governo anterior para demostrar “uma falsa redução de delitos de alto impacto”, de acordo com nova a procuradora-geral da Cidade do México, Ernestina Godoy.

Números maquiados

O especialista da México Evalúa acredita que é muito provável que o problema seja recorrente em outros estados e cita um estudo recente da ONG que detectou anomalias no reporte das taxas de homicídios em vários locais.

— Há indicadores de que a prática de alterar as cifras vem acontecendo em diversas partes do país. Há um erro sistêmico, de falta de controles e da ausência de um sistema de monitoramento para que esses números sejam revisados — explicou ao GLOBO. — É um problema grave e generalizado, que veio à tona na Cidade do México, onde houve mudança de governo, mas, se pudéssemos analisar outros locais, encontraríamos erros similares.

Na Cidade do México, vários casos de homicídios teriam sido registrados como mortes por causas naturais. O mesmo se repetiu em casos de roubos de celular e de carros.

— Temos outros casos que poderiam ser mais escandalosos. Graças a isso, não temos a informação real e, portanto, não temos como tomar uma decisão sobre o problema. É uma mentira para a população dizer que as taxas de criminalidade caíram — acusou Ernestina Godoy.

Independentemente dos erros e mesmo com a mobilização de mais 150 mil policiais e militares nas áreas mais sensíveis do país, os altos índices de violência não devem baixar em curto prazo, avaliam os analistas. O próprio López Obrador reconheceu que a diminuição da violência no país vai “demorar um pouco”.