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Como a demora para agir e avisos ignorados atrapalharam a luta contra o coronavírus em Nova York

Apesar da resposta caótica do governo Trump, outros estados responderam de maneira mais rápida e eficaz para conter avanço da epidemia
Funcionários de hospital em Nova York carregam corpo de vítima da Covid-19 para caminhão refrigerado Foto: David Dee Delgado / AFP
Funcionários de hospital em Nova York carregam corpo de vítima da Covid-19 para caminhão refrigerado Foto: David Dee Delgado / AFP

NOVA YORK — Uma mulher de 39 anos pegou o vôo 701 de Doha, no Catar, para o Aeroporto Internacional John F. Kennedy no final de fevereiro, a etapa final de sua viagem de volta do Irã para Nova York . Uma semana depois, em 1º de março, ela testou positivo para o novo coronavírus , o primeiro caso confirmado na cidade de uma doença que já havia devastado a China e partes da Europa. No dia seguinte, o governador Andrew Cuomo , ao lado do prefeito Bill de Blasio , prometeu, em uma entrevista coletiva, que investigadores da área de saúde localizariam todas as pessoas no voo da mulher. Mas nada foi feito.

Um dia depois, um advogado de New Rochelle, no subúrbio de Nova York, testou positivo para o vírus — um sinal alarmante já que ele não havia viajado para nenhum país afetado, sugerindo que a disseminação comunitária já estava ocorrendo. Embora os investigadores tenham rastreado o paradeiro do advogado e suas conexões nos corredores mais movimentados de Manhattan, os esforços se concentraram no subúrbio, não na cidade, e De Blasio pediu à população que não se preocupasse.

— Vamos dizer a todos no segundo em que acharmos que o comportamento deva mudar —  disse o prefeito em 5 de março.

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Por muitos dias após o primeiro caso positivo, quando o coronavírus se espalhou silenciosamente por toda a região de Nova York, Cuomo, De Blasio e seus principais assessores demonstraram uma confiança inabalável de que o surto seria rapidamente contido. Haveria casos, disseram repetidamente, mas os hospitais de Nova York estavam entre os melhores do mundo. Os planos estavam sendo colocados em prática. A cidade já havia sobrevivido a muitas coisas antes — ebola, zika, H1N1, e até ao 11 de Setembro.

— Desculpe nossa arrogância como nova-iorquinos, mas achamos que temos o melhor sistema de saúde do planeta aqui em Nova York — disse Cuomo em 2 de março. — O que estamos dizendo é que, o que aconteceu em outros países versus o que aconteceu aqui, nós sequer imaginamos que será tão ruim quanto em outros países.

Mas agora, a cidade de Nova York e os subúrbios vizinhos se tornaram o epicentro da pandemia nos Estados Unidos, com mais casos do que em muitos países. Mais de 138 mil pessoas no estado testaram positivo para o vírus e, na quarta-feira, Cuomo anunciou que mais 779 pessoas morreram em 24h, o maior total de um dia no estado até o momento. O número de mortos é de quase 7 mil pessoas.

Epidemiologistas apontaram a densidade da cidade de Nova York e seu papel como centro internacional de comércio e turismo para explicar por que o coronavírus se espalhou tão rapidamente. E parece altamente improvável que qualquer resposta do estado ou da cidade pudesse ter parado completamente a propagação da doença. Além disso, desde os primeiros dias da crise, autoridades estaduais e municipais foram prejudicadas por uma resposta federal caótica e muitas vezes disfuncional, incluindo problemas significativos com o número de testes, o que tornou muito mais difícil avaliar o alcance do surto.

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Mesmo assim, os esforços iniciais das autoridades novaiorquinas para conter a pandemia foram prejudicados por suas próprias orientações confusas, alertas não ouvidos, decisões atrasadas e disputas políticas. Segundo Thomas R. Frieden, ex-chefe do Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e ex-comissário do Departamento de Saúde da cidade, se o estado e a cidade tivessem adotado medidas de distanciamento social generalizadas uma ou duas semanas antes, incluindo o fechamento de escolas, lojas e restaurantes, o número estimado de mortes pelo surto poderia ter sido reduzido de 50% a 80%.

— Você tem que agir muito rápido, em questão de horas e dias, não semanas. Uma vez que isso se espalha, não há como parar.

Ruas desertas no distrito de Queens, na cidade de Nova York, contrastam com operação do metrô: governador Andrew Cuomo e prefeito Bill de Blasio são pressionados a adotar medidas ainda mais drásticas Foto: JUAN ARREDONDO / NYT
Ruas desertas no distrito de Queens, na cidade de Nova York, contrastam com operação do metrô: governador Andrew Cuomo e prefeito Bill de Blasio são pressionados a adotar medidas ainda mais drásticas Foto: JUAN ARREDONDO / NYT

Entrevistas com mais de 60 pessoas na linha de frente da crise — autoridades municipais e estaduais, executivos de hospitais, profissionais de saúde, líderes sindicais e médicos que trabalham em emergências — revelaram como o vírus fez com que as autoridades tivessem que improvisar.

— Tudo foi lento — disse o vereador Stephen T. Levin, do distrito do Brooklyn, que havia pedido à prefeitura que tomasse medidas mais rápidas à medida que o surto se espalhava. — Você precisa se adaptar rapidamente, e nada do que estávamos fazendo era se adaptar rapidamente.

Cuomo e De Blasio têm se concentrado nos últimos dias, em expandir amplamente a capacidade do sistema de saúde para tratar pacientes com coronavírus à medida que o surto se aproxima de seu pico. O estado e a cidade criaram novas enfermarias, vasculharam o mundo em busca de respiradores e equipamentos de proteção e recrutaram agressivamente médicos e enfermeiros em todo o país.

Primeiro caso

Cuomo vem sendo elogiado por suas entrevistas coletivas diárias, onde não apenas se concentra nos fatos sobre a pandemia, mas também busca conseguir apoio do público aos seus esforços para conter a disseminação. De Blasio também fez das entrevistas à imprensa uma prioridade. Ainda assim, Cuomo às vezes reconhece as dificuldades em combater o surto.

— Estou cansado de estar sempre depois desse vírus — afirmou em 31 de março. — Estamos tentando recuperar o tempo perdido.

O governador e o prefeito enfatizam que seus esforços pressionaram o governo Trump a agir de forma mais decisiva para conter a doença no país. Nova York foi o primeiro estado a obter aprovação federal para seus próprios testes de coronavírus.

— Todas as ações que tomei foram criticadas na época como prematuras — disse Cuomo ao New York Times. — Os fatos provaram que minhas decisões estão corretas.

Em comunicado, De Blasio acrescentou que se trata de "um vírus com apenas alguns meses" e que tem de lidar com "uma ciência que muda todos os dias".

Os hospitais também expressaram confiança em seus planos para responder a uma pandemia. Em 2 de março, a Associação de Saúde do Estado de Nova York declarou que seus membros estavam "preparados para um maior afluxo de pacientes causado pela Covid-19". Mas poucos parecem ter feito esforços significativos antes que o vírus chegasse para aumentar o suprimento de respiradores ou equipamentos de proteção. Em vez disso, usaram os estoques governamentais de emergência.

As autoridades de Nova York agiam com base na ideia de que a doença não havia chegado ao estado até o primeiro caso — a mulher que voltava do Irã. Agora, no entanto, reconhecem que o vírus estava quase com certeza no estado muito antes disso. Especialistas em doenças infecciosas sabiam há semanas, antes de qualquer teste positivo, que muitos dos primeiros casos seriam perdidos por causa de falhas significativas nos exames feitos pelo governo federal.

O plano inicial era rastrear, isolar e conter cada caso. Cuomo prometeu fazer o que fosse preciso para encontrar todas as conexões com a mulher que chegou do Irã. Mas ninguém nunca fez esse trabalho. Autoridades locais só podiam solicitar uma investigação ao CDC, e a agência não realizou nenhuma porque acreditava que ela não havia sido infectada durante o voo, segundo as autoridades. Nem Cuomo nem De Blasio mencionaram novamente qualquer descoberta sobre os passageiros daquele avião.

Prefeito de Nova Iorque, Bill de Blasio, na cerimônia de recepção do USNS Comfort Foto: Stephanie Keith / Getty Images
Prefeito de Nova Iorque, Bill de Blasio, na cerimônia de recepção do USNS Comfort Foto: Stephanie Keith / Getty Images

Em 5 de março, De Blasio reconheceu que o vírus havia se espalhado além de seu controle. Ainda assim, não querendo causar alarme sem necessidade, disse aos novaiorquinos que continuassem com suas vidas normais, o que deixou muitos confusos sobre o perigo que enfrentavam.

O secretário de Saúde da cidade, Oxiris Barbot, tentou tranquilizar a população no início de fevereiro, afirmando que o vírus "não poderia ser contraído no metrô ou no ônibus". O prefeito reiterou a declaração várias vezes no início de março.

Antiga rivalidade

Mas, de repente, o sistema da cidade de Nova York para detectar doenças infecciosas entrou em alerta. Embora apenas cerca de 100 casos do coronavírus houvessem sido confirmados em todo o estado, havia um aumento de doenças como a gripe nas  emergências na primeira semana de março. Alguns dias depois, o número de policiais chamados para atender doentes saltou visivelmente, assim como o número de ligações ao 911 com pessoas com muita febre e tosse.

O governador e o prefeito começaram a tomar medidas leves para restringir as atividades das pessoas, mas mesmo assim foram recebidas com resistência.

Nos bastidores, no entanto, as principais autoridades de saúde já estavam cada vez mais preocupadas. Demetre Daskalakis, chefe de controle de doenças da cidade, ameaçou deixar o cargo se as escolas não fossem fechadas. E Barbot — que no início do surto insistia em que "os nova-iorquinos continuavam sob baixo risco" — deu uma avaliação muito mais assustadora em uma reunião a portas fechadas com executivos de negócios na prefeitura, em 12 de março: até 70% dos moradores da cidade poderia ser infectados.

De Blasio então instou os novaiorquinos a começarem o distanciamento social e a trabalhar de casa sempre que possível. No fim de semana seguinte, no entanto, boa parte da vida noturna da cidade parecia continuar em ritmo acelerado.

Mesmo que assessores do prefeito e do governador, ambos democratas, trabalhassem juntos na resposta à pandemia, antigas rivalidades começaram a surgir. Embora os dois líderes tenham apresentado uma frente unificada no início do surto, estava claro, em meados de março, que suas batalhas políticas de longa data continuavam. A entrevista coletiva de 2 de março foi a única aparição dos dois juntos.

O fechamento das escolas foi a primeira discordância. De Blasio, reticente, foi obrigado a acatar a decisão após ser pressionado por sindicatos. Só após a decisão sobre as escolas, o prefeito tornou-se mais assertivo ao sugerir grandes mudanças na vida cotidiana.

— Os nova-iorquinos provavelmente em breve deverão ficar em casa, exceto para as atividades mais necessárias —  disse ele em 17 de março, em uma ordem semelhante à que já havia sido implementada na área da Califórnia.

Dessa vez, Cuomo foi quem resistiu, pedindo um isolamento mais gradual.

— Tenho tanto medo do pânico quanto do vírus, e acho que o medo é mais contagioso do que o vírus no momento — disse o governador, quando perguntado dois dias depois a respeito dos comentários do prefeito.

Mas então, as coisas mudaram rapidamente na Califórnia  e o governador Gavin Newsom emitiu uma ordem estadual para que os moradores ficassem em casa. O estado tinha 675 casos confirmados. Nesse mesmo dia, 19 de março, Nova York tinha 4.152.

Vista da Times Square completamente vazia: retrato do tamanho da crise sanitária em Nova York, o epicentro da covid-19 nos Estados Unidos Foto: ANGELA WEISS / AFP
Vista da Times Square completamente vazia: retrato do tamanho da crise sanitária em Nova York, o epicentro da covid-19 nos Estados Unidos Foto: ANGELA WEISS / AFP

Naquela noite, cerca de 20 líderes proeminentes de Nova York, incluindo membros locais do Congresso,  representantes de bairros, membros do Conselho da Cidade e figuras cívicas e religiosas, participaram de uma teleconferência convocada pela procuradora-geral do estado, Letitia James. Cuomo então cedeu. No dia seguinte, decidiu fechar o comércio. A essa altura, 20 de março, o estado tinha mais de 7 mil casos confirmados.

O Departamento de Polícia de Nova York agora começa o expediente todos os dias com uma revisão de quantos de seus 36 mil policiais estão doentes. No início de abril, eram cerca de 19%.

Que a cidade de Nova York, gigantesca e interconectada, fosse duramente atingida pela pandemia pode ter sido inevitável. Mas Washington e, em seguida, o estado de Nova York, tinham opções. Seus líderes tinham poder para tomar as principais decisões. Seus assessores argumentam que eles se moveram o mais rápido possível, dada a informação falha que recebiam do governo federal e no meio de uma crise veloz, em uma escala nunca vista antes.

—  Este é um inimigo que subestimamos desde o primeiro dia — admitiu Cuomo, na segunda-feira. E nós pagamos um preço caro por isso.