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Como Portugal passou de exemplo ao caos na segunda onda da Covid-19

Na última semana, país foi o que mais registrou novos casos e mortes por cada milhão de habitantes; governo decretou nova quarentena no dia 15 de janeiro
Ambulâncias aguardam em fila pela liberação de leitos em hospital de Lisboa Foto: PEDRO NUNES / REUTERS
Ambulâncias aguardam em fila pela liberação de leitos em hospital de Lisboa Foto: PEDRO NUNES / REUTERS

LISBOA — Depois do medo, o relaxamento. Essa transição, tanto da população portuguesa quanto do governo do país, criticado por relutar em tomar medidas, é um dos motivos apontados para explicar por que Portugal passou de exemplo ao caos no combate à pandemia de coronavírus. Na última semana, foi o país com mais novos casos diários (1.083,6) e mortes (18,2) por milhão de habitantes, segundo a Universidade Johns Hopkins. Na Europa, o Centro Europeu de Controle de Doenças revelou que o país também está na frente no ranking, com 1.429,43 casos de Covid-19 por cem mil habitantes e 247,55 óbitos por milhão de habitantes em 14 dias.

—Falhamos no coletivo, porque achávamos que só acontecia com os outros. Assim como no Brasil, também temos negacionistas que dizem que o governo exagera. E o governo poderia antecipar medidas. Ao menos as autoridades admitiram ter feito uma avaliação desalinhada com a realidade — explicou o médico Adalberto Campos Fernandes, professor da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) e ex-ministro da Saúde, substituído em 2018 pela atual ministra, Marta Temido.

Com uma população de 10,1 milhões, Portugal foi um dos últimos países na Europa a detectar um caso de coronavírus, em 2 de março. Diante do horror logo ao lado, na vizinha Espanha, parte da população já tomava cuidados e quem pôde tirou os filhos da escola e ficou em casa espontaneamente antes do decreto de confinamento, em 18 de março. O vírus circulava pouco e havia 667 casos e duas mortes, contra 13,7 mil casos e 588 mortos na Espanha. A quarentena de 45 dias foi obedecida. Em 30 de abril, havia 22 mil casos e 989 óbitos (na Espanha: 24 mil mortos e 213 mil casos), e o Conselho de Ministros anunciou o fim das restrições: “Graças ao esforço dos portugueses (...) foi possível conter a pandemia.”

— Portugal teve a vantagem da aprendizagem pelo exemplo diante do desconhecido. As pessoas tinham medo, mas agora há relaxamento, fadiga e menor concordância — lembrou Fernandes.

Erros natalinos

Portugal perdeu a vantagem em dezembro. O governo teve a chance de aprender com os exemplos novamente, mas definiu estratégia distinta. Ao detectarem uma escalada de casos, a possibilidade de disseminação de novas cepas e a chegada de nova onda durante um dos invernos mais rigorosos em décadas, Espanha, Itália, Alemanha e Reino Unido restringiram atividades. Houve limitação de deslocamentos e participantes da ceia natalina por casa, mesmo com o cansaço e relaxamento generalizado dos europeus diante das restrições. Enquanto isso, Portugal autorizou viagens entre cidades e não estabeleceu limite de pessoas no Natal.

— As pessoas relaxaram no comportamento, e Portugal não protegeu os grupos vulneráveis durante o Natal, enquanto a Europa foi mais restritiva. Isso e a nova variante trouxeram descontrole. Portugal, neste momento, é mau exemplo, espero que volte a ser bom — disse Carla Nunes, epidemiologista da Ensp.

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Além do afrouxamento no Natal, outros dois problemas agravaram a situação no fim de 2020. Justo quando o vírus circulava com mais velocidade, o começo da campanha de vacinação aumentou a esperança da população e intensificou o relaxamento. O governo de Boris Johnson emitiu alerta de que havia sido encontrada uma nova cepa no Reino Unido com características mais transmissíveis e letais: a variante britânica. Portugal ignorou. O primeiro-ministro António Costa chegou a dizer que, se soubesse a tempo, as medidas para o Natal seriam diferentes. Mas o alarme do Ministério da Saúde britânico soou em 14 de dezembro, dez dias antes do Natal. A incidência da nova cepa em Portugal triplicou em sete dias, está em 13% dos casos e poderá chegar a 60% em fevereiro.

Em relatório, a ECDC creditou a explosão de casos em Portugal “ao relaxamento das medidas” no Natal e à disseminação da cepa britânica.

— A variante britânica seria mais letal sobre um país como Portugal, um dos mais envelhecidos da Europa, o quinto do mundo, e repleto de lares com pacientes vulneráveis — disse Fernandes.

Diante da gravidade inédita, o governo decidiu decretar nova quarentena em 15 de janeiro e manteve as escolas abertas. A medida foi muito criticada, porque liberou a circulação diária de mais de dois milhões de pessoas. Uma semana depois, Costa voltou atrás e encerrou as atividades letivas . Os voos comerciais e privados de e para o Brasil estão suspensos.

Há chance de o confinamento ser prolongado até março, porque os casos e óbitos batem recordes diários e somavam, na sexta-feira, 181.818 e 11.886, respectivamente. Nunca houve tantos internados com Covid-19 nos hospitais: 806. As estruturas hospitalares e de recursos humanos estão à beira do colapso e o governo admite pedir ajuda internacional. No sábado, as autoridades informaram que só havia sete leitos de UTI para Covid-19 disponíveis no território continental português.

Médicos brasileiros

Para contornar a falta de médicos no Sistema Nacional de Saúde (SNS), o presidente Marcelo Rebelo incluiu em decreto de estado de emergência a contratação temporária de médicos estrangeiros. Um médico da União Europeia tem seu diploma reconhecido imediatamente, mas os salários em Portugal são menores. Por isso, a maior afluência é de médicos sul-americanos, sendo os brasileiros a maioria entre os 850 candidatos em processo. São pelo menos quatro provas e há quem esteja na fila desde que chegou ao país.

—Dei entrada em 2019, e demoraram um ano só para me convocar para a prova teórica em 2020. Ainda aguardo a prova prática e a defesa de tese, sem datas previstas. Depois, tenho que me inscrever na Ordem dos Médicos, e leva-se, em média, seis meses para conseguir autonomia, mas há gente na fila há mais de dois anos. É frustrante — disse Laís Vieira, formada na Universidade Federal de São Paulo e que auxilia no exame de pacientes realizados pelo Instituto de Saúde Pública do Porto.

Há médicos brasileiros que garantem ter sofrido discriminação dos responsáveis pelas autonomias de especialidades na Ordem. E por isso há tanto atraso na obtenção de autonomia. O Conselho das Escolas Médicas Portuguesas propôs à Ordem dos Médicos uma inscrição temporária para médicos na fase final das etapas do reconhecimento. Mas a entidade reluta.