Mundo

Conflitos entre Estado e índios mapuches voltam a arder no Sul do Chile

Disputa centenária entre povos originários, que compõem 13% da população, e o governo chileno vem à tona com recusa da Justiça em deixar xamã cumprir pena de prisão no território indígena, levando a confrontos e incêndios de prédios públicos
Membros da comunidade mapuche se reúnem numa cerimônia tradicional para discutir o impasse com o Estado chileno em Temuco: sem reconhecimento como povo indígena Foto: JOSE LUIS SAAVEDRA / REUTERS
Membros da comunidade mapuche se reúnem numa cerimônia tradicional para discutir o impasse com o Estado chileno em Temuco: sem reconhecimento como povo indígena Foto: JOSE LUIS SAAVEDRA / REUTERS

Invadida por espanhóis há quase cinco séculos, a região da Araucanía, terra originária dos índios mapuches no Sul do Chile, estremece por antigas pendências. Uma greve de fome que já se prolonga há mais de 100 dias, incêndios em prédios públicos, casos de racismo explícito contra índios e respostas intimidatórias do governo central estão entre as ocorrências recentes de uma intensa agitação.

A tensão tem raízes profundas, que dizem respeito à própria relação do Estado chileno com os mapuches, que compõem cerca de 13% da população nacional. Ao contrário de outros países da América Latina — como o Brasil, a Argentina e o Peru — o Chile não reconhece a existência de “povos indígenas” em sua Constituição, herdada da ditadura, mas fala apenas em “etnias”, um conceito que não confere estatuto jurídico especial aos povos originários. Isto torna muito difícil a existência de modos de vida tradicionais, com um forte assédio de grileiros e grandes produtores rurais sobre as terras dos mapuches desde a década de 1960.

— A situação atual diz respeito a como se constitui a relação entre o Estado chileno e os seus povos indígenas. Não se trata de um caso em particular, mas de algo mais profundo, ligado a como os povos indígenas tomam parte na sociedade chilena; não só em termos sociológicos, mas também em seu estatuto jurídico — afirmou ao GLOBO Isabel Aninat, reitora da Faculdade de Direito da Universidade Adolfo Ibáñez e ex-assessora presidencial para os povos indígenas do primeiro governo de Sebastián Piñera (2010-2014). — Há uma questão ligada à pobreza, mas não só. O principal problema são as promessas não cumpridas por parte de diferentes governos.

Greve de fome

A mais recente espiral de violência remete ao dia 4 de maio, quando o machi (autoridade espiritual) Celestino Córdova entrou em greve de fome, que manté

m ainda hoje. O xamã foi condenado a 18 anos de prisão por participação em um incêndio que levou à morte de um casal em uma fazenda em 2013, no caso conhecido como Luchsinger-Mackay. Sem questionar sua sentença, ele exige cumprir parte dela em sua rewe, seu território, perto de Temuco, na Araucanía.

A exigência de Córdova se baseia em um Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas assinada em 2009 pelo Chile, cujo texto diz que “deve-se dar preferência a outros tipos de sanção além do encarceramento (para membros de povos indígenas)”. Na quinta-feira, o Tribunal Constitucional do Chile julgou que o convênio não é autoexecutável, necessitando de uma lei interna que o regulamente, e negou a liberdade a Córdova.

O machi mantém, assim, sua greve de fome, ao lado de outros 26 presos mapuches, que começaram a jejuar junto com ele ou nos meses seguintes. Este grupo exige prisão domiciliar enquanto durar a pandemia da Covid-19. Todos se identificam como presos políticos, baseando-se no fato de que boa parte foi presa em manifestações e ocupações nos últimos anos. Desde 2001, métodos radicais de protesto se popularizaram na região, e acusações de incêndio são comuns entre os presos.

Coronavírus : População indígena corre risco especial frente à pandemia, alerta OMS

Em solidariedade aos detidos, membros do mesmo povo ocuparam a sede de cinco prefeituras na Araucanía no final de julho. Isto perturbou grupos de proprietários rurais, que se organizaram para protestar contra os ocupantes, e, durante seu ato, desferiram ataques abertamente racistas.

“Quem não pula é mapuche”, dizem dezenas de pessoas em um vídeo em Curacautín, 900 km ao sul de Santiago.

Na cidade, houve um inédito confronto entre os produtores agrários e os mapuches, com incêndio de veículos, brigas físicas e pedras arremessadas entre os dois lados na madrugada do dia 2 de agosto. Cenas semelhantes aconteceram em outras cidades, sendo as mais dramáticas em Ercilla e Traiguén, onde as duas prefeituras foram incendiadas.

Nova Constituição

Nesse cenário, a primeira reação de ministros do governo de Sebastián Piñera foi de rechaço total das reivindicações, alegando que demandas sob ameaça impossibilitam negociações legítimas. Em função das duas mortes, o caso Luchsinger-Mackay tem um caráter simbólico para os defensores do governo conservador, que em geral se opõem a direitos indígenas. Alçado ao cargo com a meta de unificar a base, a primeira atitude do recém-empossado ministro do Interior, Víctor Pérez, em uma visita à Araucanía, foi atacar os manifestantes mapuches:

— Há grupos em operação que têm capacidade militar, financiamento, capacidade operacional e logística e estão determinados a que não haja paz nem tranquilidade—afirmou no dia 31 de julho. — Enquanto houver tal violência desencadeada, que gere medo nas pessoas, é difícil construir uma mesa de diálogo.

Segundo Verónica Figueroa Huencho, acadêmica mapuche da Universidade Católica de Santiago, o governo segue uma “estratégia de criminalização e uso da força”, que “sempre foi a sua resposta histórica para problemas territoriais”.

— Desde os anos 90, nunca houve nenhuma resposta exceto uma maior presença militar e mais recursos para forças de segurança. O uso da força e de leis que vêm da ditadura sempre foi a solução do Estado para a questão mapuche — afirmou. — O mais provável é que haja um enfraquecimento das vias institucionais, e cheguemos a níveis de conflito cada vez mais extremos.

Na terça-feira, Córdova divulgou uma carta de despedida caso venha a morrer, na qual diz que “será um orgulho dar a vida pelo meu povo mapuche”. Há mais de uma semana, ele ameaça começar uma greve de fome seca — sem a ingestão de líquidos — o que lhe daria poucos dias de vida. O governo estuda como proceder nesse caso, e considera alimentá-lo forçosamente. Complica este cenário uma ameaça de greve imposta por caminhoneiros, históricos aliados da direita chilena, que reclamam de cargas incendiadas.

Leia mais: ‘Impensável’ uma semana antes, acordo para nova Constituição só saiu quando Chile estava à beira do abismo

Uma pesquisa divulgada há duas semanas diz que 76% dos chilenos concordam que os indígenas são discriminados. Outros 57% acham que existe terrorismo na Araucanía, mas, ao mesmo tempo, 79% acreditam que a solução deve ser por via política e diálogo. O Chile está prestes a fazer um plebiscito constitucional. Verificou-se na pesquisa que 93% dos chilenos concordam que o povo mapuche tem o direito de ser reconhecido na Constituição, que 81% acreditam que o mapudungun deve ser reconhecido como língua oficial, e que 75% opinam que suas terras ancestrais devem ser devolvidas a eles.

Segundo Fernando Pairicán, pesquisador mapuche do Centro de Estudos Interculturais e Indígenas da Universidade Católica, a nova Constituição do Chile pode assegurar um novo estatuto aos seus índios.

— A ausência de diálogo é um sintoma de promessas quebradas. A situação requer um diálogo sério, concreto e profundo, no qual os compromissos sejam realmente respeitados pela estrutura política deste país. Acredito que seja fundamental chegarmos a um acordo político para podermos canalizar, por meio de canais democráticos, as manifestações de violência que estão sendo assistidas. O processo constitucional que está se aproximando é um ótimo momento para essas mudanças.