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Conheça os motivos e os antecedentes da invasão da Ucrânia pela Rússia

Putin transformou antiga queixa sobre expansão da Otan para o Leste em motivo de conflito com ex-república soviética que se afastou de Moscou
Militares das Forças Armadas ucranianas bloqueiam uma estrada em Kiev no dia em que as forças terrestres da Rússia invadiram a Ucrânia Foto: Sergei Supinsky / AFP
Militares das Forças Armadas ucranianas bloqueiam uma estrada em Kiev no dia em que as forças terrestres da Rússia invadiram a Ucrânia Foto: Sergei Supinsky / AFP

A crise entre Ucrânia e Rússia, que com a invasão russa desta quinta-feira se tornou uma das mais graves em solo europeu nas últimas duas décadas, partiu de antigas divergências estratégicas entre Moscou e os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Conheça abaixo a origem da crise e as opções que os envolvidos têm agora.

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Qual é a origem da crise?

A Rússia e a ex-república soviética da Ucrânia vivem uma relação turbulenta desde a primeira década deste século, com a alternância em Kiev de presidentes favoráveis ao Ocidente e aliados de Moscou. Em 2013, por pressão da Rússia, o governo ucraniano desistiu de um acordo que poderia pavimentar a entrada do país na União Europeia. Isso levou a uma revolta nas ruas e à queda de Viktor Yanukovich, alinhado ao Kremlin.

Os anos seguintes foram marcados pela anexação pela Rússia da Península da Crimeia, sede da frota russa no Mar Negro e que havia sido cedida à Ucrânia na era soviética; pelo conflito entre separatistas pró-Moscou e o Exército local no Leste ucraniano; e pela retomada da candidatura de Kiev a uma vaga na Otan. Sob críticas de Moscou, o país estreitou seus laços com a aliança, e Vladimir Putin apontou que a adesão seria uma “linha vermelha”. A Rússia também estava incomodada com as recentes aquisições de armas por Kiev, incluindo drones de ataque turcos, e com seu possível uso contra os separatistas no Leste do país.

Em novembro de 2021, percebendo uma oportunidade nas dificuldades enfrentadas pelo governo de Joe Biden e suas divergências com os aliados europeus sobre como lidar com Moscou, Putin concentrou mais de 100 mil soldados na fronteira da Ucrânia, soando alarmes em Kiev, em Washington e na Europa de que estaria prestes a uma invasão, finalmente concretizada neste final de fevereiro.

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O que a Rússia queria?

Entre as  “demandas de segurança”, apresentadas à Otan em dezembro, a Rússia exigia um veto permanente à entrada da Ucrânia na aliança, mas essa era apenas uma parte dos objetivos do país. Putin critica a expansão da organização rumo às fronteiras russas, que vem desde o fim da União Soviética em 1991, e cita uma promessa feita por líderes dos EUA e da Europa, nos anos 1990, de que o “limite” da Otan seria a Alemanha então recém-reunificada , algo que Washington nega.

Para Putin, as forças da Otan e dos EUA deveriam deixar os países do Leste europeu e suspender exercícios perto das fronteiras russas. Analistas veem nisso uma forma de a Rússia ver “oficializado” seu status de potência, com o reconhecimento de que as antigas repúblicas soviéticas na Europa são sua área de influência, mesmo sem considerar que muitas nações dessa região estão alinhadas ao Ocidente.

O que a Otan estava disposta a negociar?

Em sua resposta à Rússia, a Otan e os EUA deixaram claro que alguns pontos eram inegociáveis: o veto à entrada da Ucrânia, que significaria o rompimento da política de “portas abertas”; a retirada das forças do Leste europeu e, por fim, o status das armas nucleares localizadas em nações como a Alemanha e a Turquia.

A Rússia se declarou de forma veemente insatisfeita com as respostas do Ocidente, ao qual acusou de violar um pacto firmado em 1999 no âmbito de Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) no qual os países se comprometiam a  não "fortalecer sua segurança à custa da segurança de outros Estados” .

Contudo, analistas ainda viam um caminho para a redução das tensões: a negociação, e em alguns casos renegociação, de acordos de segurança coletiva , a começar por um novo tratado sobre as armas nucleares de alcance intermediário — o texto anterior, de 1987, foi rasgado por Donald Trump em 2019, assim como outros acordos do tipo.

Após várias reuniões entre Putin, o americano Joe Biden e líderes europeus como o francês Emmanuel Macron e o alemão Olaf Scholz, o diálogo foi interrompido na última segunda-feira, quando o Kremlin reconheceu a independência das autoproclamadas repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk, no Leste da Ucrânia, comandadas por líderes pró-Moscou.

Qual era o objetivo da mobilização de forças pela Otan?

Ao aumentar seu contingente nos países-membros do Leste europeu l em reação à mobilização de tropas russas, a Otan pretendia passar uma imagem de união para Moscou, sinalizando que a pressão sobre os ucranianos não serviria para inibir sua presença na área.

Mas, apesar das boas relações com os EUA e o Ocidente, a Ucrânia não é parte da Otan, e não se beneficia do chamado Artigo 5º, que considera um ataque contra um dos membros como um ataque a todos.

Além disso, embora a Rússia seja considerada uma adversária pelo governo Biden, a Ucrânia não tem para Washington a importância estratégica que tem Taiwan, por exemplo, cujo autogoverno atual impede que a China controle o estreito vital que a separa da ilha.

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Quais são as opções da Otan após a invasão?

É consenso entre os países da Otan que a invasão é o pior cenário: afinal, não há disposição para enviar tropas para lutar contra a Rússia.

Por isso, a prioridade é a aplicação de sanções, o que já vem sendo feito desde terça-feira. As medidas visam dificultar a negociação de títulos soberanos russos nos mercados internacionais e também punem líderes políticos e autoridades do governo russo. Além disso, a Alemanha suspendeu o licenciamento do gasoduto Nord Stream 2, que forneceria gás russo à Europa através do Mar Báltico e foi concluído em setembro.

Em termos militares, a aliança poderá agora ampliar o envio de armas a Kiev e fomentar grupos armados de resistência.

Quais são as opções da Rússia agora?

Ao anunciar a invasão da Ucrânia, na manhã de quinta-feira, Putin sugeriu que ela seria limitada às regiões comandadas por separatistas pró-Moscou no Leste do país, mas os alvos dos ataques russos foram muito mais amplos, atingindo instalações estratégicas em várias cidades da Ucrânia. Há agora muita especulação sobre até onde o presidente russo quer chegar e se pretende provocar a queda do governo pró-Ocidente de Kiev, subsituindo-o por um aliado da Rússia.

Segundo o porta-voz do Kremlin, para parar a guerra Moscou exige que a Ucrânia se declare neutra, desista de integrar a Otan e desmilitarize seu território.

Ao mesmo tempo, Moscou tem cartas na manga: sanções econômicas do Ocidente podem ser respondidas com o corte no fornecimento de gás natural à Europa, ampliando a crise energética no continente — as reservas internacionais, de US$ 630 bilhões, também servem de colchão inicial às sanções.

O Kremlin intensificou seus laços com a China, que também enfrenta disputas com os EUA , mas ainda não está claro até onde os chineses vão apoiar a ofensiva, que afeta um dos pilares do seu discurso internacional, de defesa da soberania e integridade territorial dos Estados.

Há divisão na Europa?

O ponto central, especialmente para a Alemanha , é a energia. O país depende do gás importado da Rússia para atender sua demanda interna, assim como quase todos os 27 países da União Europeia. No entanto, a suspensão do licenciamento do gasoduto Nord Stream 2 mostrou que Berlim está disposta a sofrer perdas econômicas para conter Putin.

Há também questões em torno do alinhamento a Washington. Um maior alinhamento era defendido por Reino Unido , hoje fora da União Europeia, e pelas nações do Leste europeu, que temem o expansionismo russo. Do outro lado, países como a França ressaltavam a necessidade de autodeterminação e autonomia do bloco. Por isso, o presidente Emmanuel Macron vinha tentando conduzir um diálogo diplomático entre Rússia e Ucrânia, para mostrar que a Europa conseguiria resolver suas próprias crises sem a participação americana.

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Macron, no entanto, acabou fracassando. Ao reconhecer as repúblicas separatistas dentro da Ucrânia, Putin rasgou os Acordos de Minsk, mediados por França e Alemanha para reduzir o conflito no Leste ucraniano. Macron via a retomada dos acordos como um meio de desanuviar as tensões, abrindo caminho para as discussões mais amplas de segurança desejadas pela Rússia.

Onde a Ucrânia entrava nas negociações?

As opções para a Ucrânia eram poucas e, em sua maioria, pouco atraentes. A entrada para a Otan, mesmo sem considerar a oposição de Moscou, é hoje improvável, resultado da pouca confiança nas autoridades em Kiev e do cenário estratégico regional. A promessa de fornecimento de armas se resume a equipamentos defensivos, e nem os EUA parecem dispostos a um envolvimento mais amplo. Enfrentar os russos no campo de batalha é difícil, dadas as diferenças entre os dois arsenais.

Por isso, um número crescente de analistas defende uma solução com precedentes históricos: a neutralidade da Ucrânia, seguindo os passos de países como a Finlândia.  Nesta semana, Putin disse que a desistência da Ucrânia em entrar na Otan e a adoção de um status de neutralidade pela ex-república soviética seria uma solução para a crise. A ideia, no entanto, enfrentava resistência em Kiev.