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Coronavírus atinge política de imigração do governo Trump

Pandemia leva governo dos Estados Unidos a chamar médicos estrangeiros e proteger imigrantes ilegais
Trump em entrevista aos jornalistas em meio à pandemia do coronavírus. Foto: YURI GRIPAS / REUTERS
Trump em entrevista aos jornalistas em meio à pandemia do coronavírus. Foto: YURI GRIPAS / REUTERS

WASHINGTON - O governo Trump insiste que os profissionais médicos estrangeiros, especialmente aqueles que trabalham com a Covid-19 , entrem em contado com seus consulados para agilizar o processamento de seus vistos, para que assim possam ingressar na luta dos Estados Unidos contra o novo coronavírus o mais rapidamente possível. Ele também qualifica a colheita como trabalho "essencial", sabendo que são os imigrantes sem documentos que o fazem. E ainda anuncia que não dará batidas em busca dos ilegais para evitar que o medo de ir ao médico gere focos de contágio.

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A pandemia de coronavírus destacou a importância dos trabalhadores imigrantes na economia americana. E expôs algumas contradições na política pesada com a imigração, que é um dos pilares do discurso do presidente Donald Trump. Surge o paradoxo de que, embora a guarda de fronteira acelere a expulsão de imigrantes sem documentos, mantidos em seus centros, o governo protege os sem visto no campo e facilita a entrada de imigrantes qualificados para aliviar a escassez de médicos para combater a pandemia na linha de frente.

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Isso acontece exatamente quando o país acorda do doce sonho de pleno emprego e enfrenta números históricos de desemprego. Mais de 16 milhões de pessoas, um em cada 10 trabalhadores no país, solicitaram subsídio de desemprego entre as últimas duas semanas de março e a primeira semana de abril. Especialistas não têm dúvida de que surgirão outro milhão. Donald Trump, que endossou o slogan de "comprar de americano e contratar americano", está agora entre duas forças: empresários que o instam a relaxar com a imigração para conter o colapso da economia e ativistas antiimigração, a quem ele encoraja há mais de três anos, que reagem com raiva a qualquer indício de mudança de atitude no momento mais crítico.

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– Queremos que venham – disse Trump em 1º de abril, sobre os imigrantes que vão trabalhar nos campos. – Não estamos fechando a fronteira para que todas essas pessoas não possam entrar. Eles já estão aqui há anos e eu assumi meu compromisso com os agricultores: eles continuarão a vir.

A colheita do morango está começando no interior da Califórnia. Em duas semanas, serão a das cerejas e dos mirtilos. Em maio, damascos e nectarinas. Um estudo da Universidade da Califórnia estima que 800 mil pessoas trabalham no setor agrícola da Califórnia. A estimativa mais baixa é que 60% não tem documentos legais. Nestes dias de isolamento são eles que garantem frutas e legumes frescos nos supermercados.

Esses trabalhadores sempre temeram a polícia. Desde que a Califórnia aprovou a quarentena em 19 de maio, há outro motivo para pedir os documentos: a polícia monitora para que apenas os trabalhadores "essenciais" saem às ruas. A ironia do momento é que os sem documentação e os que trabalham nos campos são ambos trabalhadores essenciais. Sem eles, a cadeia de suprimentos de alimentos não funciona.

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– Se não fosse por eles, quantas pessoas ficariam sem comida nas lojas – diz Manuel Cunha, presidente da Liga dos Agricultores Nisei, um grande sindicato em Fresno, Califórnia.

Há sete semanas, Cunha começou a enviar às associações de produtores uma carta padrão para assinarem. É uma espécie de garantia.

– Em apenas um parágrafo, consta o nome do trabalhador, para quem ele trabalha e o seu telefone. Se ele é parado por um policial, só precisa mostrar a carta. Eles ligam para o empregador para confirmar que a pessoa está se deslocando ao trabalho.

Ele diz que as associações distribuíram este documento entre as grandes produções agrícolas de Fresno e estima que elas já tenham impresso cerca de 400 mil.

Uma pandemia global teve que acontecer para as administrações dos EUA reconhecerem por escrito que imigrantes irregulares não podem ser dispensados. Nem aterrorizados. Em 18 de março, a polícia de imigração (ICE) anunciou que estava interrompendo as detenções indiscriminadas de imigrantes sem documentos. Somente as prisões de criminosos perigosos continuavam. O critério na presidência de Trump é prender o maior número possível de pessoas.

O comunicado do ICE diz expressamente que não haverá prisões nos arredores dos postos de serviços de saúde, como hospitais.

– As pessoas não devem evitar atendimento médico por medo da polícia de imigração – diz ele. – É uma premissa de que o coronavírus não solicita os documentos. A mudança de critério, embora temporária, se estende à saúde que já era evidente no campo da segurança pública em todas as grandes cidades dos Estados Unidos, onde a polícia não pede documentos a ninguém, para que não tenham medo de denunciar ou testemunhar crimes.

A crise também obrigou o governo a procurar fora de suas fronteiras profissionais para combater a pandemia nos hospitais do país.

"Encorajamos os médicos a buscar trabalho nos Estados Unidos com visto de trabalho ou de intercâmbio, especialmente aqueles que trabalham com a Covid-19, a entrar em contato com sua embaixada ou consulado mais próximo para consulta."

A mensagem foi divulgada em 26 de março pelo Departamento de Estado. Seis dias antes, os serviços rotineiros de visto nas embaixadas de todo o mundo haviam sido suspensos, reduzidos a serviços essenciais e focados no repatriamento dos americanos.

A mensagem, publicada no site do Departamento de Estado e transmitida nas mídias sociais, provocou uma enxurrada de ligações de profissionais médicos para indagar sobre o aparente convite para iniciar um processo que, em condições normais, pode levar anos. Mas também críticas nas redes sociais pelo que foi interpretado como a promoção de fuga dos profissionais e que poderia ser letal para países que estão enfrentando a pandemia com recursos cada vez mais limitados.

No dia seguinte, o Departamento de Estado teve que emitir um "esclarecimento": a mensagem era dirigida apenas, disseram eles, aos profissionais que já haviam sido admitidos para trabalhar ou estudar nos Estados Unidos.

– Devo confessar que talvez o que publicamos não tenha sido tão claro quanto deveria –  disse Ian Brownlee, do Escritório de Assuntos Consulares, em uma entrevista por telefone com jornalistas. – São pessoas já autorizadas para vir, não estamos procurando outras –  esclareceu.

Perguntado por que, então, para publicar o anúncio, se nenhum tratamento especial estava  sendo oferecido, Brownlee respondeu que ele teria que olhar "como tudo isso aconteceu".

Não foi a única medida reconsiderada (ou esclarecida) após gerar controvérsia. Em 5 de março, o Departamento de Segurança Interna anunciou que aumentaria os vistos de trabalhadores temporários disponíveis em 35 mil este ano. É um visto que permite que os empregadores contratem trabalhadores estrangeiros para atividades não agrícolas temporárias, como hospitalidade ou turismo. Os empregadores frequentemente defendem um aumento de cota, mas os defensores da redução da imigração acreditam que a prática reduz os salários e impede que os americanos tenham empregos.

Em 2 de abril, após a publicação dos dados alarmantes de emprego, o governo anunciou que o plano de expansão da cota foi suspenso "devido às atuais circunstâncias econômicas". O problema é que muitos empregadores vêem os trabalhadores estrangeiros como cruciais para certos empregos difíceis de preencher com os cidadãos dos EUA. E mais quando agora eles podem obter mais renda com benefícios de desemprego e outros auxílios contemplados no plano gigantesco de estimular a economia.

– Os imigrantes estão trabalhando nos supermercados, nos campos, processando alimentos, na construção. São as pessoas que, em tempos de emergência, mantêm o país funcionando – defende Sindy Benavides, diretora da Liga dos Cidadãos Latino-Americanos Unidos. – Estou confiante de que essa crise nos fará entender como sociedade.