Mundo Coronavírus

Coronavírus: com mais de 1 milhão de estudantes espalhados pelo mundo, China vive dilema sobre repatriação

Pequim teme que eles provoquem uma nova onda de Covid-19 no país; ao mesmo tempo, não quer passar a imagem de que não se preocupa com seus cidadãos
Penny Pei, estudante da Universidade Estadual da Carolina do Norte em Raleigh, disse que pagou a uma agência de viagens US$ 12 mil por uma passagem em classe econômica de Chicago para Xiamen, na China. Foto: Travis Dove / New York Times
Penny Pei, estudante da Universidade Estadual da Carolina do Norte em Raleigh, disse que pagou a uma agência de viagens US$ 12 mil por uma passagem em classe econômica de Chicago para Xiamen, na China. Foto: Travis Dove / New York Times

NOVA YORK - Um estudante sonhou comprar uma passagem de US$ 30 mil em um jato particular. Uma mãe, frustrada com a incapacidade de levar a filha para casa, enviou máscaras . Um grupo de pais desesperados fez um incomum apelo público ao governo chinês por ajuda.

O surto de coronavírus deixou mais de um milhão de estudantes chineses em dormitórios vazios e amedrontadas cidades ao redor do mundo. Muitos desses estudantes no exterior querem voltar para a China , onde números oficiais sugerem que as autoridades fizeram progressos para conter a pandemia. O medo, a política e as diferentes prioridades do governo chinês estão no caminho.

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Praticamente todos os vôos partindo da China e para o país foram cancelados, pois Pequim tenta impedir que viajantes infectados reacendam o contágio lá. As passagens que restaram são incrivelmente caras. No caso dos estudantes que ficaram retidos nos Estados Unidos, suas famílias temem que as relações tensas entre Pequim e Washington atrapalhem os esforços de repatriação da China.

Em uma carta aberta publicada on-line e dirigida ao embaixador chinês nos Estados Unidos, os pais de 200 estudantes na área de Nova York elogiaram cuidadosamente o apoio do governo chinês a seus cidadãos no exterior. Em seguida, citaram a série de filmes “Wolf Warrior”, grande sucesso na China, em que soldados patrióticos do Exército de Libertação Popular protegem o povo chinês de ameaças no exterior.

"Sempre acreditamos firmemente que um passaporte chinês pode levá-lo a mais lugares e, em caso de emergência, pode levá-lo para casa", escreveram eles.

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Os estudantes perdidos colocaram Pequim em um impasse: o governo está ansioso para domar o surto de coronavírus que assolou o país antes de se espalhar para o exterior, pondo sua economia em queda livre. Trazer pessoas do exterior, acredita o governo, convida a uma maior disseminação.

No entanto, a imagem da China está em risco. Pequim se retratou como uma força cada vez mais poderosa no cenário global econômico, político e militar. Jurou proteger seu povo em todo o mundo.

Além disso, os estudantes e seus pais constituem uma base importante para o Partido Comunista. Muitos são da classe média alta, se não ricos. Estudantes estrangeiros podem se tornar embaixadores virtuais da China à medida que assumem posições nas fileiras de negócios, política ou academia.

"Os estudantes internacionais geralmente são o grupo mais preocupado com a pátria entre os chineses estrangeiros", escreveu Gao Cheng, pesquisador da Academia Chinesa de Ciências Sociais, em uma publicação nas redes sociais. “Eles também são o grupo mais vulnerável ao impacto da epidemia e a uma possível onda de sentimentos anti-China. Eles ainda precisam ter confiança no país.”

O governo chinês se apressou em mostrar como vem ajudando. Em uma série de discursos públicos na semana passada, as autoridades enfatizaram o papel que as embaixadas chinesas em todo o mundo têm desempenhado para chegar aos estudantes. Elas publicaram fotos dos kits de saúde que enviaram aos estudantes que, como disse um funcionário, permitirão que os alunos “sintam o calor e o amor da pátria”.

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A China também divulgou seus esforços para resgatar 1.457 estudantes presos em países como Bangladesh, Camboja, Etiópia, Irã e Itália. Na quinta-feira, chegou um vôo a Londres para evacuar 180 estudantes chineses do Reino Unido.

O governo "atribui grande importância e se preocupa profundamente com os estudantes chineses no exterior, e tomou importantes medidas para proteger sua segurança e saúde", disse Hua Chunying, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, em 31 de março.

— Eles são filhos da pátria e do futuro do nosso país — disse.

No entanto, levá-los para casa será difícil.

US$ 12 mil por um assento na classe econômica

Uma agência de viagens disse a Penny Pei, de 23 anos, estudante de ciências sensoriais na Universidade Estadual da Carolina do Norte em Raleigh, que poderia levá-la de Chicago a Xangai por US$ 10 mil. Três dias depois, após o governo chinês reduzir ainda mais os vôos internacionais, o preço subiu para US$ 16 mil.

— Não quero pagar esse absurdo — disse Pei, que em um momento de frustração tirou uma captura de tela de um anúncio que ela viu oferecendo uma cadeira de US$ 30 mil em um jato particular.

Agora, seus pais a questionam constantemente sobre se está comendo o suficiente e se está sozinha. A resposta é sim, para ambas perguntas.

— Eu realmente aprecio a preocupação deles, mas fica um pouco demais — disse ela.

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No sábado, depois que dois de seus bilhetes foram cancelados e temendo restrições adicionais de viagem em maio, ela pagou à agência de viagens US$ 12 mil por um bilhete de classe econômica de Chicago para Xiamen em meados de abril.

— Eu ainda estou um pouco desconfiada se eu realmente poder voltar para casa, porque muita coisa pode acontecer nesses 10 dias — disse Pei.

Cerca de 1,6 milhão de estudantes chineses estavam estudando no exterior quando o coronavírus atacou, e 1,4 milhão deles ainda estão lá, segundo dados oficiais. O maior grupo único de estudantes ficava nos Estados Unidos, totalizando cerca de 400 mil.

As famílias na China assistem em crescente desespero ao número de casos e mortes aumentarem nos Estados Unidos — e ao governo chinês tomar medidas para impedir que o surto retorne ao país asiático. Depois que o governo cortou os vôos internacionais, apenas 108 estavam programados para chegar na China na semana passada do exterior, de acordo com a Administração de Aviação Civil da China, ou cerca de 1% do total em tempos melhores.

Rainey Jin, estudante da Universidade de Nova York, durante sua quarentena em um hotel em Hangzhou, na China, na sexta-feira. Foto: Reprodução/The New York Times
Rainey Jin, estudante da Universidade de Nova York, durante sua quarentena em um hotel em Hangzhou, na China, na sexta-feira. Foto: Reprodução/The New York Times

Rainey Jin, uma estudante de 20 anos da Universidade de Nova York, saiu dos Estados Unidos no momento certo. Ela voou para Taiwan via Hong Kong no caminho de volta ao continente. Quando desembarcou em Taipé em 22 de março, soube que estava em um dos últimos vôos antes que Taiwan proibisse todos os passageiros em trânsito. Os membros da família a inundaram com mensagens de texto, preocupando-se com a viagem e lembrando-a de manter a máscara sempre.

— Somos muito jovens, mas temos que enfrentar a dificuldade porque nossa família não está perto de nós — disse Jin, que estava no terceiro para o último dia de quarentena determinada pelo governo na cidade chinesa de Hangzhou, na China, na sexta-feira. — Temos que descobrir como voltar para casa. Temos que decidir se vamos ficar ou voltar.

Alguns pais, como os que escreveram cartas ao embaixador chinês nos Estados Unidos, pediram ao governo que permitisse vôos de evacuação, uma decisão politicamente difícil. As evacuações exigem uma coordenação estreita com governos estrangeiros que possuem suas próprias restrições de viagem. No entanto, não está claro se as autoridades chinesas e americanas discutiram voos de evacuação.

— Não estou ciente de que estejamos rastreando estudantes chineses nos Estados Unidos que procuram assistência, uma vez que estamos tentando repatriar cidadãos dos EUA do exterior — disse Ian Brownlee, vice-secretário adjunto do Departamento de Assuntos Consulares do Departamento de Estado.

Para muitas pessoas na China, as imagens de Nova York e de outras cidades americanas parecem uma repetição de Wuhan, a cidade chinesa onde o surto surgiu. Eles temem que seus filhos fiquem à deriva.