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Crise pós-pandemia em Portugal empurra brasileiros para morar nas ruas

Quantidade de sem-teto aumentou de maneira geral no país, obrigando governo a rever a meta de acabar com a população de rua até 2023
Cláudia Cristina, a Nikita, brasileira que saiu da Rocinha e hoje mora na rua no Porto, em Portugal. Foto: Gian Amato / Agência O Globo 2-7-20
Cláudia Cristina, a Nikita, brasileira que saiu da Rocinha e hoje mora na rua no Porto, em Portugal. Foto: Gian Amato / Agência O Globo 2-7-20

PORTO, Portugal  -A  pandemia de Covid-19 varreu as oportunidades de trabalho para longe de Nikita. Com a escassez de faxinas, a diarista brasileira não pode pagar €25 (R$ 149) por um quarto de pensão e agora vive na rua, em um ponto histórico do Porto: a Fonte Monumental Mouzinho da Silveira. Aos “zukas”, como são chamados os brasileiros em Portugal, ela conta que morava na Rocinha, mas deixou o Brasil após a morte da mãe, na década de 1990. Entre uma história e outra do que deixou para trás, ela fica à frente do pequeno espaço repleto de pertences pessoais, para encerrar a conversa com um sorriso:

— Aqui é a nova Rocinha.

Nikita é Cláudia Cristina e tem 44 anos. Precisou ir morar na rua em maio entre os muitos imigrantes que tentam sobreviver aos danos sociais e econômicos da pandemia. Impulsionada pelo recente acréscimo de residentes brasileiros, a população de rua aumentou em Lisboa e no Porto. O problema é grave ao ponto de o presidente da República, Marcelo Rebelo de Souza, renunciar à meta da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem Abrigo, que visava tirar todos das ruas até 2023.

— Dizer que a meta de 2023 vai ser cumprida era mentir aos portugueses — disse Rebelo.

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Ainda não há números oficiais deste recente aumento e ir ao encontro da população de rua é a única maneira de comprovar a visível incidência de estrangeiros, sobretudo brasileiros, como atestou Marcelo Rebelo. No intervalo de uma semana no fim do último mês, o chefe de Estado percorreu o Porto e Lisboa para traçar um perfil.

— Gente mais jovem, em parte estrangeiros, brasileiros e marroquinos, mas não só. Há também portugueses. Portanto, é um desemprego muito recente a somar com os sem abrigo mais antigos. É uma questão que nos vai preocupar ao longo de meses e anos — afirmou Rebelo à imprensa portuguesa que o acompanhava em uma curta caminhada nos arredores da Estação São Bento, Mercado São Sebastião e Morro da Sé, no Porto, onde ajudou a distribuir quase 400 cestas básicas, enquanto este auxílio antes da pandemia era de uma centena.

Nikita vive com Marco, seu marido português, na fonte que fica a poucos metros da São Bento. Entre os vizinhos, há um restaurante de cozinheiro famoso e premiado, a filial de uma cadeia internacional de cafeterias, loja de produtos feitos com cannabis, um moderno bar vegetariano e um apartamento/estúdio conjugado, com 53metros quadrados, anunciado para venda por R$ 3,7 milhões.

— Mas ninguém dá sequer uma moeda com esta história de pandemia. Preciso conseguir os €25 de tempos em tempos para ir à pensão tomar banho e dormir, porque é difícil passar a noite na rua — conta Nikita.

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No meio de toda a crise, ela ainda tenta obter sua autorização de residência, porque diz não ter dinheiro para pagar pelo registro de casamento. Também não tem inscrição na Segurança Social, o que garantiria ao menos o apoio emergencial do governo. O documento atualizado é o do Serviço Nacional de Saúde (SNS), usado para seguir no tratamento para combater a dependência de cocaína. Foi no SNS que realizou dois testes de Covid-19, ambos negativos.

— Este vírus acabou com meu trabalho logo quando as coisas estavam se endireitando. Ganhava €10 ou €15 (R$ 59 ou R$89) por casa. Meu marido andava na construção civil e até chegamos a pagar um aluguel de uma casinha a €200 (R$ 1.194). Quando ele perdeu o trabalho na pandemia, não deu mais para pagar e o proprietário nos botou na rua — afirma ela, que não pretende voltar para o Brasil.

Precariedade em Lisboa

Assim como no Porto, em Lisboa os brasileiros nas ruas e os sem-teto em geral vivem sob as sombras da cidade, com maior concentração durante a pandemia em Arroios, Praça do Rossio e das Estações de Santa Apolônia, Oriente e Sete Rios. Esta última foi o derradeiro endereço nas ruas do casal paulista Elias Guedes e Robson Gonçalves, ambos de 22 anos. Casados há três anos, saíram do Brasil por sofrerem ataques homofóbicos e racistas e chegaram a Portugal em fevereiro, um mês antes de ser decretado o estado de emergência. Sequer deu tempo de providenciar todos os documentos, como a inscrição na Segurança Social.

— Eu trabalhava como ajudante de pedreiro e tínhamos um quarto alugado. Com a pandemia, acabou o trabalho e também o dinheiro e eu parei de pagar o quarto. Dormimos primeiro na rua em Almada (na região metropolitana de Lisboa ) por duas semanas. Mas foi até humilhante arrumar uma marmita por lá, a mulher que entregava foi muito grossa — lembra Robson.

Diante da vergonha de serem vistos e do medo de serem abordados pela polícia, eles decidiram sair de Almada e se esconder nas proximidades da Sete Rios.

— Fomos morar na barraca debaixo do viaduto da estação, porque era mais escondido. Lá na rua desencadeou tudo: dor de dente, fome, frio e medo, não de violência, mas medo. Sorte que uma senhora nos viu e avisou em um grupo de WhatsApp de brasileiros, que nos resgataram — conta Robson, que hoje trabalha em uma empresa de reciclagem e paga €300 (R$ 1.792) num quarto em Amadora ( outro município na região metropolitana de Lisboa ).

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O resgate do casal foi feito com a ajuda do empresário brasileiro Ezequias Santos, integrante do grupo de apoio no WhatsApp chamado Ajuda Humanitária, que localiza e informa os pontos de maior incidência. Recentemente, Santos levou para o armazém de sua empresa de alpinismo comercial mais um casal e duas crianças que estavam na rua. Depois, conseguiu uma propriedade rural para morarem por um ano em Cacém, nos arredores da capital.

— Mas há muitos que ainda estão escondidos. Também tentamos arrumar cursos e trabalhos, ajudamos nas compras, nas passagens de transportes urbanos e recebemos e fazemos doações para todo o país. A crise e a segunda onda da pandemia podem estar a caminho e não é hora para imigrar sem estrutura — alerta.

Diretor geral do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA), Nuno Jardim, confirma a tendência, que não se limita ao Porto e a Lisboa.

— Na rua, há brasileiros nos diversos locais onde estamos pelo país. Em Albufeira (Algarve), estão sendo postos na rua após perderem trabalho e ficam sem lugar para dormir. Apesar dos focos maiores em Lisboa e Porto, é um problema nacional que nunca achei ser possível erradicar até 2023 — comenta Jardim.

Coordenadora do CASA no Porto, Natália Coutinho reconhece que aumentou a produção de cestas básicas.

— Muitos brasileiros nos procuram e perguntamos se querem refeições, mas não contabilizamos nem fazemos triagem, porque o momento é de emergência, de dar comida. Porém, posso dizer que antes da pandemia tínhamos três equipes e servíamos 180 refeições por semana. Agora, são quatro equipes e mais de 600 refeições. Se alguma pessoa pedir apoio para dormir, já não posso garantir que irei conseguir um teto — resume ela.

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Setores prejudicados desde o início da pandemia, o turismo e a alimentação empregam grande parte dos brasileiros residentes, muitos com contratos temporários que foram encerrados. Parte destas vagas não serão repostas a curto prazo, porque a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) informou que 39% dos restaurantes estão em risco de falência. Na hotelaria, são 18% os estabelecimentos sem condições de reabertura.

Ajuda para o retorno

A incerteza em relação ao futuro fez com que brasileiros procurassem em Portugal o Programa de Retorno Voluntário Árvore, da Organização Internacional para as Migrações (OIM). Entre os 472 estrangeiros, 438 (93%) brasileiros se inscreveram neste primeiro semestre para receber o auxílio financeiro para a volta ao Brasil, com um pico de mais de 120 inscrições em abril, auge da pandemia. Em março e junho, 53 regressaram e mais 22 têm viagem marcada para este mês. Já o Itamaraty revelou recentemente que repatriou 8.320 pessoas, entre turistas e residentes.

Apesar de ressaltar que é preciso considerar vários fatores para esta procura, inclusive a situação no país de origem, Luís Carrasquinho, gestor do programa da OIM, afirma que a pandemia aumentou a vulnerabilidade dos imigrantes.

— Sabemos que muitos trabalham de maneira informal, estando mais expostos à precariedade e ao desemprego e, consequentemente, a enfrentar dificuldades econômicas e do ponto de vista social — diz ele.

Portugal tem mais de dois milhões de pessoas na linha da pobreza. A taxa de desemprego está em 6,3%, com previsão de chegar a 10%. Mais de 100 mil perderam emprego na pandemia. Há 21 bancos de comida e 2.600 instituições de apoio no país, que atendem a 390 mil pessoas. Entre abril e maio, os pedidos aos bancos duplicaram e chegaram a 14 mil, o que representaria mais 60 mil pessoas em situação de pobreza.

SUÍÇA_BRASIL_02/07