A direita boliviana se uniu para exigir a renúncia do então presidente Evo Morales (2006-2019), atualmente refugiado na Argentina, e, desde que alcançou seu objetivo, em 10 de novembro passado, mergulhou numa feroz batalha interna que levou o país a ter oito chapas na disputa pela Presidência. Nas eleições do próximo dia 3 de maio, os bolivianos de esquerda terão a opção de votar pelo Movimento ao Socialismo (MAS), liderado do exílio por Morales, e os de centro e direita deverão escolher entre várias opções, entre elas a presidente interina Jeanine Áñez , o ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005) e o líder civil do departamento (estado) de Santa Cruz, o ultradireitista Luis Fernando Camacho .
Em novembro passado, dias após a saída de Morales do governo sob forte pressão das Forças Armadas e da Polícia Nacional, a sensação predominante na Bolívia era de que seus principais adversários políticos se uniriam no futuro pleito pela Presidência. Sabe-se que Camacho, ex-presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, participou da formação do governo de Áñez. O empresário, que pertence a uma família poderosa de Santa Cruz, liderou protestos e bloqueios que colocaram em xeque o governo de Morales e ficou famoso dentro e fora da Bolívia pelo ousado e questionado gesto de entrar no palácio presidencial com uma Bíblia e uma bandeira nacional, horas depois da renúncia do então presidente
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Se muitos imaginaram que Camacho e Áñez formariam uma dupla imbatível nas urnas, a guerra de egos, entre outros fatores, impossibilitou esse projeto, confirmaram ao GLOBO fontes próximas a ambos.
— A verdade é que Camacho foi parte do governo de Jeanine, e Jeanine pretendia ser parte de um eventual governo de Camacho. Mas não houve acordo e a presidente acabou lançando sua própria candidatura, com o aval da Justiça [alguns opositores questionaram a jogada de Áñez alegando impedimentos constitucionais] — disse uma das fontes.
Na visão do analista político Franklin Pareja, existe, ainda, uma questão geopolítica.
— Esta eleição tem importância regional e dois países estão observando atentamente cada movimento: Estados Unidos e Brasil. A realidade é que Camacho cometeu muitos erros, fez alianças que não convenceram e hoje a presidente é vista pelos principais aliados estrangeiros de seu governo como a melhor alternativa — afirmou Pareja.
Em 2019, Camacho passou por Brasília e foi recebido pelo chanceler Ernesto Araújo quando era apenas um líder civil desafiando o então governo de Morales. Nos últimos dois meses, porém, situações envolvendo o agora candidato presidencial causaram preocupação e geraram desconfiança, entre elas o vazamento do áudio de uma conversa como seu companheiro de chapa, o líder cívico de Potosi, Marco Antonio Pumari. No telefonema, Camacho diz a Pumari que não pode lhe conceder US$ 250 mil e o controle de duas alfândegas. Após o escândalo, Pumari explicou a meios locais que estava negociando recursos necessários para uma campanha. Finalmente, ambos fizeram as pazes e Pumari será o candidato a vice da aliança “Acreditamos”.
No fim de semana passado, houve uma reunião da direita boliviana em Santa Cruz e as divergências foram evidentes. Como comentou um dos participantes “todos acham que o momento é deles”. O único entendimento possível foi concordar que, em caso de segundo turno, os derrotados no primeiro apoiarão o mais votado. Isso se o candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), o ex-ministro da Economia Luis Arce, conseguir manter a base dura de votos do partido, entre 25% e 30%, e conquistar uma vaga no segundo turno. Se a queda-de-braço final for entre dois candidatos de centro-direita (o único de centro é Mesa), o acordo perderá total sentido.
Uma das surpresas dos últimos dias foi a inscrição do almirante Ismael Schabib como candidato à Presidência pela Ação Democrática Nacional (ADN), partido do falecido ex-presidente e ditador Hugo Banzer (1971-1978 e 1997-2001). Também participará da corrida o ex-presidente Jorge Tuto Quiroga (2001-2002) e o descendente de coreanos e pastor evangélico Chi Hyung Chung.
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A presidente interina terá como companheiro de chapa o também direitista Samuel Doria Medina, empresário e ex-candidato presidencial. Ambos liderarão a aliança Juntos, já considerada favorita por vários analistas locais.
— Jeanine está à frente do governo e tem o apoio da Unidade Democrática, partido forte e com estrutura de Santa Cruz. A presidente é do departamento de Beni e com Camacho em baixa suas chances são grandes — assegurou Carlos Cordero, da Universidade Maior de San Andrés.
Para ele, Mesa também é um candidato relevante. Nas eleições de 2019, depois anuladas, o ex-presidente obteve 2,2 milhões de votos e ficou em segundo lugar, com 36%. Independentemente da discussão sobre se Morales conseguiu ou não ultrapassar os 45% e, nesse caso, ter sido reeleito no primeiro turno, Mesa fez uma boa eleição.
— Não descarto um segundo turno entre Jeanine e Mesa — aventurou-se a dizer Cordero.
Na opinião do analista Gonzalo Mendieta, o MAS de Morales conseguirá entre 25% e 30% dos votos e poderá ter a maior bancada no Parlamento. Isso é justamente o que espera o ex-presidente para evitar qualquer iniciativa de impeachment nos próximos tempos. Mesmo sabendo que sua candidatura poderá ser derrubada pela exigência de residência de pelo menos dois anos consecutivos no país, Morales inscreveu-se como candidato a senador.
— Poderemos ter um cenário similar ao peruano: um presidente de direita e um Congresso controlado por outras forças, o que obrigará o futuro governo a negociar acordos para sobreviver — concluiu Pareja.