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Mundo Rússia

'Do final de 1989 até 1991, percebeu-se que o sistema não tinha mais como funcionar', afirma historiador sobre o fim da URSS

Professor da USP e um dos principais pesquisadores brasileiros sobre o desmantelamento do bloco soviético, Angelo Segrillo aponta fatores e movimentos que levaram ao discurso final de Mikhail Gorbachev, em 1991
Apoiadores do Partido Comunista da Federação Russa marcham ate o túmulo do ex-líder soviético, Josef Stalin, no aniversário de 142 anos de seu nascimento Foto: DIMITAR DILKOFF / AFP
Apoiadores do Partido Comunista da Federação Russa marcham ate o túmulo do ex-líder soviético, Josef Stalin, no aniversário de 142 anos de seu nascimento Foto: DIMITAR DILKOFF / AFP

O historiador Angelo Segrillo foi um dos primeiros especialistas brasileiros a fazer pesquisas nos arquivos soviéticos após a queda da URSS, há 30 anos. Em seu primeiro livro sobre o tema, “O declínio da URSS: um estudo das causas” (Record), ele analisa as razões que levaram ao fim do país que foi uma das duas superpotências do “breve século XX”, quando o mundo era dividido em dois blocos ideológicos antagônicos. Hoje professor da USP, Segrillo também é autor de outros livros sobre a Rússia, que herdou o arsenal nuclear soviético e a posição geopolítica da antiga potência, entre eles “De Gorbachev a Putin” e “Os russos”. Ele falou ao GLOBO sobre aquele momento.

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Que causas o senhor identificou como determinantes para o fim da União Soviética?

Esse foi um processo multicausal, com muitos fatores influenciando. Se tivesse que escolher os que foram mais centrais, diria que, na área econômica, foi a desaceleração da economia e do desenvolvimento tecnológico da URSS nas décadas da chamada Terceira Revolução Industrial (ou revolução dos computadores) dos anos 1970 e 1980, o que a fez cair na competição econômica com os países capitalistas centrais. Na área política, foi o aprofundamento da alienação da população em relação à falta de democracia socialista real no país, que passou a atingir até parte da própria liderança política, que deixou de acreditar nos ideais originais da revolução e passou a agir de maneira meramente carreirista. A isso se agregavam outros fatores complicadores, como o reavivamento dos problemas entre as diferentes nacionalidades que compunham a URSS, o peso financeiro dos setores de defesa e os problemas agrícolas no país.

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Muito se fala da invasão do Afeganistão (1979-1989) como fator que precipitou o descontentamento com o sistema soviético, algo que Gorbachev não conseguiu reverter a tempo. Qual o peso dessa guerra no desmantelamento da URSS?

Eu não diria que a guerra causou o descontentamento com o sistema soviético, mas a maneira desastrada como foi conduzida e, principalmente, a retirada em derrota do país em 1988, contribuíram para a perda de prestígio do sistema soviético não só no exterior, mas internamente, algo que guardou algumas semelhanças com o que aconteceu com os EUA no Vietnã. A retirada do Afeganistão, assim como o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, foram dois marcos simbólicos que contribuíram em muito para a perda de prestígio da URSS.

Outra questão é a própria construção da União, com 15 repúblicas com características próprias. Quando começaram a se manifestar as forças internas que levaram à separação dessas repúblicas?

A URSS era um estado multinacional com dezenas de nacionalidades diferentes exigindo seus direitos culturais especiais. Como o império russo era conhecido como a “prisão das nações”, a URSS herdou este potencial estorvo. Depois de muitas crises nos anos 1920 e 1930, aos poucos a União Soviética parecia estar equacionando, ou colocando sob controle, as disputas entre nacionalidades. Entretanto, com a abertura política da perestroika, estes problemas voltaram com força. A “carta nacional” foi usada por políticos locais para fortalecer o cacife de seus movimentos de oposição. Na parte final da perestroika, com muitos problemas econômicos e Gorbachev já sem parte de seu controle central, a “carta nacional” ajudou a derrubar o edifício chamado União Soviética. Os problemas nacionais não foram centrais no início da perestroika, mas foram extremamente influentes no meio e, principalmente, no final dela. E o problema nacional não se resumia às 15 nacionalidades titulares de cada república, já que em cada uma delas havia dezenas de nacionalidades diferentes que constituíam subproblemas.

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Qual foi o peso, dentro da URSS, dos movimentos que puseram fim aos regimes comunistas nos países do antigo Pacto de Varsóvia?

Não acho que a influência vinda dos países do Pacto de Versóvia tenha sido muito determinante no processo interno da URSS. É claro que os russos sabiam o que acontecia no Leste Europeu. Mas os problemas internos eram tão maiores que balizaram o processo interno. Acho que a influência principal se deu na direção oposta. A abertura de Gorbachev desencadeou e estimulou processos autonomistas e independentistas nos países comunistas do Leste Europeu que, a partir daí, tomaram dinâmicas próprias. Um momento crucial veio quando Gorbachev deixou claro que não interferiria nos processos de reforma naqueles países. Isso foi fundamental para que se acelerassem.

Qual a importância da corrida armamentista — especialmente a nuclear — com os EUA no processo?

O aumento de custos financeiros causados pela competição com o programa “Guerra nas estrelas" de Ronald Reagan certamente aumentou a pressão sobre o já pressionado sistema soviético nos anos 1980. Entretanto, acho exagerado dizer que “Reagan quebrou a URSS com a disputa militar”, como às vezes é apregoado, pois o próprio Gorbachev respondeu posteriormente, ainda nos 1980, com seus acordos de desarmamento, o que possibilitou um alívio para a União Soviética.

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É possível apontar o momento em que Gorbachev perdeu a capacidade de permanecer no poder e manter a URSS viva?

Essa é uma pergunta que provoca grandes controvérsias dentro da Rússia e entre antigos comunistas, que criticam Gorbachev por ter feito reformas muito radicais, achavam que deveriam ter controlado mais a política rumo a algo mais gradual, e não consideravam urgentes as mudanças. Já outros achavam que a União Soviética não poderia manter a competição com os EUA para sempre. Uma coisa concreta é o ano de 1988, na perestroika, quando ocorreu o “vai ou racha”. Foi o início das reformas radicais, e é algo que poderia mudar a Rússia em um sentido diferente. Não se falava em capitalismo, mas em um regime misto. Do final de 1989 até 1991, se percebeu que o sistema não tinha mais como funcionar. Gorbachev ainda tentou manter o governo de uma forma mais descentralizada, até que veio o golpe de agosto de 1991, e ele não conseguiu mais.

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A história do fim da URSS por vezes é contada como se fosse um processo “de cúpula”, liderado por Boris Yeltsin, que, ao lado da Bielorrússia e da Ucrânia, selou o pacto para o fim da União. A população participou do processo ou apenas assistiu aos acontecimentos?

A perestroika foi um processo que começou na cúpula do Partido Comunista com Gorbachev em 1985, surpreendendo, por sua profundidade, a população. Mas, uma vez iniciado, os russos participaram ativamente, votando nas novas eleições mais livres e se agrupando em organizações da sociedade civil que brotaram de forma espontânea. Essa participação foi fundamental para que líderes da oposição, como Yeltsin, chegassem ao poder. Sem o apoio popular, nunca teriam conseguido isso, pois alguns, incluindo Yeltsin, foram banidos de suas próprias posições dentro do PC. Houve forte participação popular sim, mas é importante notar que, como até em democracias ocidentais, os jogos das elites e contraelites também tiveram um papel importante.