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Documentos do chanceler de Figueiredo mostram independência frente aos EUA em meio a crises

Arquivo inédito lembra Itamaraty que, sob Saraiva Guerreiro, contornou situações delicadas como a Guerra das Malvinas e a ascensão de um governo pró-Cuba no Suriname
Chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro (esquerda) e o presidente João Batista Figueiredo Foto: Orlando Brito / Agência O Globo / 25-01-1979
Chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro (esquerda) e o presidente João Batista Figueiredo Foto: Orlando Brito / Agência O Globo / 25-01-1979

Apesar de o governo de João Figueiredo , o último general da ditadura, ser muitas vezes descrito como “patético e errático” ou “um acúmulo de fracassos” — nas palavras de Elio Gaspari —, êxitos da política externa de 1979 a 1985 entusiasmam historiadores. Comandado pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro , o Itamaraty , em um país imerso na crise da dívida externa e em transição política, contornou situações delicadas como a Guerra das Malvinas , a ascensão de um governo socialista sob influência cubana no Suriname e divergências nas relações com os Estados Unidos.

Mais de 15 mil páginas daquele período, divididas em 49 volumes encadernados, se tornam acessíveis a pesquisadores a partir desta semana, graças a um trabalho do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da FGV. Trata-se da íntegra, durante o governo Figueiredo, das “Informações ao Senhor Presidente”, instrumento que, aos cuidados do chanceler, organizava a correspondência internacional do Planalto.

Por meio do acompanhamento diário da agenda internacional de Figueiredo, emerge uma diplomacia independente e altamente realista, que, por semelhança de temas, mas disparidade de propostas e soluções, evoca e contrasta com o Itamaraty de Ernesto Araújo:

— Existe a fantasia de que não é possível fazer política externa quando o país atravessa crises. O período mostra que, mesmo em situação de penúria absoluta e crises políticas incessantes, há espaço para uma diplomacia criativa — afirma o pesquisador Matias Spektor, da FGV, que recebeu o arquivo de Saraiva Guerreiro nas últimas semanas da vida deste, em 2011, e o doou ao CPDOC. — Estoura a Guerra nas Malvinas, surge uma ameaça no Suriname, o Brasil se choca com os EUA, e, em todos esses casos, observa-se um ativismo diplomático surpreendente.

Um ofício de Saraiva Guerreiro ao presidente, relatando encontro com o chanceler argentino Nicanor Costa Méndez em 1982, dá a tônica da correspondência no que diz respeito a Washington. O republicano Ronald Reagan, então na Casa Branca, tinha boas relações com Figueiredo, e o Brasil dependia de recursos. O anticomunismo visceral do americano despertava simpatias no brasileiro, e o déficit no balanço de pagamentos brasileiro, o maior até então, mais de uma vez levou representantes brasileiros a Washington de pires na mão.

“O Brasil mantinha, e pretendia continuar a manter, boas relações com os EUA, mas nunca tivéramos a ingenuidade de pensar que aquele país fizesse nada que não fosse de seu estrito interesse econômico e estratégico. (...) Isso não era uma razão para não mantermos boas relações com os EUA, mas era evidente que bastava a evolução histórica nos últimos 20 ou 30 anos para se deduzir que essas relações não podem ser o fulcro das Relações Exteriores”, escreveu o chanceler.

Invasão pela Amazônia

A afinidade ideológica e a dependência econômica não apagavam diferenças. Em telegramas, Guerreiro aponta que as intervenções americanas na América Central provaram-se “ineficazes”, já que os países permaneciam politicamente instáveis. O precedente serviu de alerta para o caso do vizinho Suriname, que, após um golpe de Estado em 1980, passou a ser comandado pelo coronel Dési Bouterse. Washington temia que, a partir de influência de Havana, a ex-colônia holandesa passasse por processo de “cubanização”. Para evitar o risco, a Casa Branca planeja invadir o país a partir da Amazônia brasileira, com a participação do Exército nacional.

Na avaliação do chanceler, “a condição de país limítrofe” do Suriname conferia “sensibilidade especial” à situação. Uma intervenção militar, como pretendiam os americanos, propiciaria “o surgimento de ressentimentos duradouros no continente” e “a transferência para a área de tensões globais e a internacionalização dos conflitos”, caso a União Soviética e Cuba reagissem.

O chanceler concluiu, a partir de uma reunião em Washington sobre o Suriname da qual participou o então conselheiro Luiz Felipe de Seixas Corrêa — hoje sogro de Ernesto Araújo — que a melhor opção era “atrair o governo Bouterse por meio de uma rápida intensificação (através da cooperação técnica e outros meios) da presença brasileira”, que substituiria a cubana. A partir de oferta feita na Missão Venturini, em abril de 1983, o Brasil apresentou recursos, os cubanos se afastaram do país e a guerra planejada por Washington foi abortada.

Ressalvadas as diferenças — o Suriname é muito menor, tinha um governo mais instável e disposto a dialogar —, o caso serve de lição para a atual relação com a Venezuela, segundo o embaixador aposentado Rubens Ricupero.

— Fizemos com que Bouterse abrisse mão de ajuda militar, técnica e econômica dos cubanos. Tínhamos razão, o Suriname não virou um regime cubanizado, não houve intervenção e não violamos nossa tradição— afirmou Ricupero. — Num caso como o da Venezuela, se o ministro fosse Guerreiro, nunca teria embarcado na canoa furada de reconhecer o líder opositor Juan Guaidó como presidente legítimo. Ele conhecia direito internacional, sabia que só se deve reconhecer quem tem controle do território. Não é questão de preferência ou gosto, mas de realidade.

Orientado por Guerreiro, Figueiredo se tornou o primeiro presidente brasileiro a visitar a África e os vizinhos Colômbia e Venezuela. Na época, o Brasil assinou o Acordo Tripartite com Paraguai e Argentina sobre a Usina de Itaipu, razão de tensão nos anos anteriores. Para Ricupero, que se diz “suspeito” para falar de Guerreiro por ter trabalhado com ele e admirá-lo, o feito mais notável da diplomacia do período foi a posição durante a Guerra das Malvinas, em 1982.

Rancores latinos

Na época, grande pressão externa e interna impelia o Brasil a apoiar o lado britânico depois de os argentinos iniciarem uma ofensiva militar para tomar o controle das ilhas. Em mensagem a Figueiredo, Guerreiro o previne, no entanto, que “os rancores latino-americanos, quando surgem, demoram a desaparecer”. A alternativa do Itamaraty seria reconhecer a legitimidade do pleito argentino, mas condenar a ação militar. O Brasil se recusaria a permitir que aviões militares britânicos usassem seu território como base e alertaria Reagan, que apoiava Margaret Thatcher, dos perigos de uma solução que humilhasse a Argentina.

“No momento, o Brasil é praticamente o único país ocidental relevante a manter relações regulares com a Argentina e a Grã-Bretanha”, escreveu Guerreiro. Nos dez anos seguintes, mesmo depois da derrota na guerra precipitar a queda da ditadura na Argentina, o Brasil representaria os interesses de Buenos Aires em Londres, até a normalização das relações entre os dois países.

— Guerreiro fez isso em um governo anticomunista, mais até do que o atual, simpático aos EUA, mas tinha força de caráter para resistir a pressões — disse Ricupero. — O caso mostra que o Brasil não tem muito poder, mas pode definir a sua política externa segundo seus interesses.

Errata: Na primeira versão desta matéria, dizia-se que o então conselheiro Luiz Felipe de Seixas Côrrea participou de uma missão ao Suriname, quando na verdade a referência era a uma reunião em Washington sobre o Suriname.

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