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Eleição em Portugal projeta nacionalmente partido de extrema direita

Sigla já subiu em pesquisa para eleições parlamentares, mas desempenho dependerá de organização e apoio de pares ideológicos europeus
O candidato da extrema direita de Portugal Andre Ventura concede um discurso em Lisboa na véspera da eleição Foto: PEDRO ROCHA / AFP
O candidato da extrema direita de Portugal Andre Ventura concede um discurso em Lisboa na véspera da eleição Foto: PEDRO ROCHA / AFP

LISBOA - Os mais de 500 mil votos obtidos por André Ventura, do partido de extrema direita Chega!, na eleição presidencial de domingo em Portugal deram  relevância nacional a uma legenda criada há apenas dois anos e que só tinha um deputado, o próprio Ventura. Ainda que não seja possível afirmar que os eleitores  que levaram o Chega! ao terceiro lugar nas presidenciais votarão nele nas legislativas de 2023, analistas apontam seu potencial de reconfiguração da política portuguesa, sobretudo no campo da direita.

Segundo pesquisa da Universidade Católica feita para a TV pública RTP com os eleitores que votaram domingo, o Partido Socialista (PS) do atual primeiro-ministro António Costa, de centro-esquerda, tem hoje 35% da preferência, quase o mesmo obtido nas eleições parlamentares de 2019 (36%). O Partido Social-Democrata (PSD), a sigla tradicional da centro-direita, tem 23%, contra 27,7% conquistados há dois anos. Já o Chega! teria 9% dos votos hoje, contra 1,29% em 2019. O Bloco de Esquerda (BE) ficaria em quarto lugar, com 8%, uma queda de quase dois pontos.

— Nessa pesquisa, o Chega! teria quase 10% do Parlamento português, 19 deputados. Seria o único partido a aumentar a sua participação parlamentar. Isso significa que Portugal passa por uma reconfiguração da representação partidária à direita  — disse o cientista político António Costa Pinto.

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Segundo os analistas, porém, a afirmação do Chega! ainda depende da estruturação da máquina do partido e dos apoios da extrema direita europeia.

— O Chega! tem hoje um candidato e terá que apresentar uma elite de candidatos, criar uma máquina de organização, de campanha, de marketing. Mas agora está credenciado a receber mais apoio da extrema direita europeia  — disse o cientista político José Adelino Maltez.

Se aumentar sua votação para o Parlamento, o Chega! passará da posição de relegado a pivô da direita, observa Costa Pinto.

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— O PSD, maior partido de oposição ao PS, agora passa a ter um rival da direita radical e populista. Rui Rio, presidente do PSD, tentou se demarcar de Ventura para tentar colar em Marcelo Rebelo, que concorreu como independente, mas teve apoio do PSD, como se isso bastasse para a reeleição. Não é verdade, porque Rebelo colheu votos em todas as áreas, da esquerda à direita, passando pelo centro  — disse o cientista político, referindo-se ao presidente reeleito com quase 61% dos votos.

O principal aliado hoje do PSD, o Partido do Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP), tem 2% nas pesquisas e corre risco de desaparecer nas próximas legislativas. Isso poderia obrigar Rui Rio a replicar no continente a coalizão feita com o Chega! na região autônoma dos Açores. Em seu discurso no domingo, Ventura advertiu: “PSD, ouve bem! Não haverá governo [de direita] em Portugal sem o Chega!”.

— O Chega! teve uma progressão eleitoral imensa que permite pressionar o PSD com um ultimato  — observou a  cientista política Conceição Pequito Teixeira.

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Vitorioso em regiões antes dominadas pelo PCP (Partido Comunista Português), como o Alentejo, Ventura tirou votos da esquerda e da direita tradicional. Esse eleitor, segundo João Bilhim, professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, foi fisgado pela ultradireita ao ser deixado para trás.

— Temas tradicionais, como o reforço das polícias, das Forças Armadas, entre outros, foram abandonados. O BE e o PCP entraram no sistema com a Gerigonça e deixaram de ser antissistema. Foi aí que o Chega! ganhou  — disse Bilhim, referindo-se à coalizão informal entre o PS e os demais partidos de esquerda que vigorou entre 2015 e 2019.

Os analistas ressaltam que também o PS saiu vitorioso das eleições. Ao decidir não apoiar candidatos formalmente e endossar Rebelo, Costa não pôs o governo sob  escrutínio. Ainda assim, a independente Ana Gomes, militante histórica do PS, ficou em segundo lugar. A vitória de Rebelo validou a continuidade da aliança entre a Presidência e o governo no combate à pandemia e à crise sanitária. De quebra, toda vez que a oposição do PSD levantar a voz, Costa terá o trunfo de apontar a possível aliança de Rui Rio com a extrema direita.

— O PS acertou ao não lançar candidato, António Costa saiu vitorioso sem ter jogado e ainda garantiu a estabilidade em tempos de crise, enquanto os partidos que o apoiavam antes, BE e PCP, tiveram derrotas históricas  — disse Maltez.

Para o biógrafo de Marcelo Rebelo, Vítor Matos, o presidente reeleito e Costa serão o eixo de um bloco central fortalecido e estável, mas ainda poderá haver espaços para cobranças:

— Rebelo tem força política, está mais livre e, sem reeleição à vista, talvez seja mais exigente com o governo, mas não há condições políticas. Acho que o governo vai até o fim. Nenhum partido vai criar crise em cima de crise em tempos de pandemia.