“Eu entrei na arena política para que os poderosos não pudessem mais atacar as pessoas que não podem mais se defender. Ninguém conhece o sistema como eu, e por isso que eu, sozinho, posso consertá-lo”, afirmou um jubilante Donald Trump, recém-confirmado o candidato republicano à Presidência, no final da convenção republicana em um hoje distante 2016.
Oito anos, um mandato, uma condenação criminal, dois processos de impeachment e uma derrota para Joe Biden depois, Trump voltou ao palco que o consagrou em 2016 para aceitar sua terceira indicação à Presidência, menos de uma semana após quase ser morto em um comício. Mas ao contrário do azarão que fez muitos torcerem seus narizes — incluindo alguns atuais aliados, como seu vice, J.D. Vance —, ele chegou para se oficializar também como o comandante do Partido Republicano, hoje remodelado à sua imagem e semelhança.
— Ele não queria fortuna, fama, poder e posição. Ele já tinha tudo isso. Donald Trump e a sua família fizeram enormes sacrifícios para concorrer e servir como presidente. Ele não precisava fazer isso. Ele queria fazer isso — disse, na quarta-feira, Kellyanne Conway, coordenadora da campanha de Trump em 2016. — Agora, oito anos depois, ele e sua família fazem novamente o sacrifício para que ele concorra e sirva como presidente.
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Sucedendo ao democrata Barack Obama, Trump protagonizou vários momentos de caos em seus quatro anos à frente da Casa Branca. A saída brusca do Acordo de Paris, meses depois de assumir, foi uma promessa de campanha, mas abalou os esforços globais para controlar as emissões de gases do efeito estufa. A construção do muro na fronteira com o México, até hoje inacabada, serviu como argumento para atacar a imigração e a oposição dos democratas a políticas migratórias mais brutais. As discussões, agressões verbais e publicações frenéticas no X se tornaram um estilo de governar (ou não governar, como diziam os adversários).
Era a forma de colocar em prática seu slogan de campanha, “Façam os EUA Grandes Novamente”, ou Maga, sua sigla em inglês, uma marca que se fundiu ao seu próprio nome.
A aliança com alguns dos ideólogos da “alt-right”, a nova faceta do conservadorismo, o tornou um símbolo para pessoas que por décadas se viram à margem do sistema, incluindo supremacistas brancos e neonazistas — a marcha de Charlottesville, em 2017, quando uma multidão caminhou com bandeiras nazistas, tochas e símbolos racistas foi um dos marcos de seu primeiro mandato. Na época, não condenou a marcha, que deixou uma manifestante contrária morta, afirmando apenas que “havia pessoas muito boas dos dois lados”.
Mais do que impor suas ideias, Trump acirrou as já visíveis divisões internas, aproveitando para marginalizar determinados setores — como o movimento contra o racismo e os imigrantes — e privilegiar aliados. No Partido Republicano, deu voz a elementos extremistas, antes motivo de piada e desprezo na sigla. Parlamentares ligados a teorias da conspiração foram eleitos, detratores, afastados de seus postos no Congresso, e céticos começaram a perceber que não havia como deter a onda Maga: em vez de resistir, se juntaram a ela por medo de serem arrastados.
— Você não precisa concordar com Trump 100% das vezes para votar nele — disse a ex-governadora da Carolina do Sul e rival de Trump nas primárias, Nikki Haley, em discurso na Convenção. — Nem sempre concordei com o presidente Trump. Mas concordamos mais vezes do que discordamos. E concordamos que os democratas se moveram tanto para a esquerda que colocam nossas liberdades em perigo.
Fraude e messianismo
Em novembro de 2020, o trumpismo foi posto à prova na disputa contra Biden, e até hoje Trump não aceitou a derrota. O discurso de fraude eleitoral, jamais comprovada, recebeu amplo apoio dentro do Partido Republicano, mesmo depois que centenas de apoiadores invadiram o Congresso para tentar impedir a certificação dos votos do Colégio Eleitoral. O então vice de Trump, Mike Pence, se recusou a seguir as ordens do chefe para burlar o processo e hoje é um pária dentro da sigla.
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A demonização dos democratas, a insistência na narrativa de fraude, resgatando alguns argumentos da campanha de 2016, quando afirmava ser necessário “drenar o pântano” de Washington, levaram mais apoiadores aos seus comícios e ajudaram a consolidar a percepção de liderança. Nem mesmo os processos de impeachment ou os julgamentos criminais, que podem levá-lo à prisão, reduziram o apelo. Pelo contrário: eles fortaleceram a ideia de que seu líder está sendo perseguido pelo “sistema”.
— Primeiro, eles tentaram arruinar sua reputação. Ele é mais popular agora do que nunca — disse Ben Carson, ex-secretário de Habitação de Trump. — E então eles tentaram levá-lo à falência. E ele tem mais dinheiro agora do que antes. E então tentaram colocá-lo na prisão. E ele é mais livre e tornou outras pessoas livres com ele.
O atentado de sábado, que por centímetros não lhe custou a vida, projetou uma aura quase divina de invencibilidade entre os apoiadores. As referências a Deus e a como o erro do atirador só pode ser creditado a uma intervenção divina se multiplicaram dentro da Convenção Republicana.
— Nosso Deus ainda salva, ainda liberta, ainda liberta. Porque no sábado o diabo veio à Pensilvânia segurando um fuzil. Mas um leão americano levantou-se e rugiu — disse o deputado Tim Scott, na segunda-feira.
Se havia certeza sobre o controle total de Trump sobre o partido antes de ele começar a discursar, na noite desta quinta-feira, há muitas dúvidas sobre os planos de governo de um eventual segundo mandato. Nos quatro dias de reunião, falou-se mais em Deus e milagres do que em planos para a economia — um dos poucos pontos fortes de Joe Biden. Os cartazes defendendo uma “deportação em massa” de imigrantes foram vistos em profusão, mas ninguém sabe quem poderá ser mandado embora, e em quais circunstâncias.
Não houve menções às recentes decisões da Suprema Corte que beneficiaram e poderão beneficiar o republicano, como sobre a imunidade parcial para atos oficiais, e ninguém citou as ameaças de Trump de se vingar de todos que, segundo ele, o puseram no centro de uma “caça às bruxas”.
Alguns assessores e estrategistas republicanos garantem que o presidente tentará usar um tom mais apaziguador daqui pra frente, quase controlado e pacificador, tentando aproveitar a comoção causada pelo atentado para atrair indecisos e insatisfeitos com a permanência de Joe Biden na corrida. Resta saber até quando essa onda “Trump paz e amor” vai durar, se é que ela se concretizará algum dia.