Pressionado internamente desde seu desastroso desempenho no primeiro debate televisivo contra Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, de 81 anos, anunciou neste domingo, em carta à nação, ter desistido da reeleição. Momentos depois, ofereceu nas redes sociais apoio à vice-presidente Kamala Harris para substituí-lo na cabeça da chapa governista, o mais provável cenário, a ser oficializado em pouco menos de um mês, na Convenção Democrata, em Chicago.
A ex-senadora da Califórnia também recebeu o apoio dos Clinton, o ex-presidente Bill e a ex-secretária de Estado Hillary, e de líderes do partido, entre eles o governador da Califórnia e cotado para o cargo, Gavin Newsom. Antes de os americanos irem às urnas em 106 dias, a retirada do incumbente, que segue até janeiro na Casa Branca, transformou a corrida eleitoral. Oito dias após Trump ter sofrido uma tentativa de assassinato durante comício na Pensilvânia, democratas e republicanos veem nesta semana a mais decisiva de um ciclo histórico marcado por surpresas e ineditismos.
Trajetória de resiliência
Nunca antes na História americana um presidente desistiu de sua reeleição com o calendário eleitoral tão avançado. E por mensagem escrita, sem pronunciamento à nação. O momento e o modo escolhidos por Biden para sair de cena refletem a trajetória de um político marcado pela resiliência, muitas vezes traduzida como teimosia. Pela identificação com o cidadão comum, fundamental para a vitória sobre Trump em 2020, inclusive ao viver em público o luto da sucessão de tragédias pessoais que o assombraram, entre elas a morte da primeira mulher e de dois filhos. E pela consequência de seus atos: mesmo antes de abortar a reeleição, uma de suas principais características, apontadas até por adversários, era a capacidade de fazer concessões, habilidade refinada durante meio século nos corredores do Senado e na Casa Branca.
Nenhuma concessão, entre elas a desistência de sua candidatura em 2016, quando apoiou Hillary pelo “bem da unidade partidária”, foi tão doída como a de domingo, revelaram pessoas de seu círculo próximo. Biden acreditou até o último minuto que conseguiria fazer novamente o que nenhum outro democrata fez: bater Trump nas urnas. E ele também sabia que a desistência seria o fim de sua longa trajetória política.
Na carta aos americanos, o presidente destacou o que, espera, será usado na campanha democrata: “Hoje, os EUA têm a economia mais forte do planeta. Fizemos investimentos históricos na reconstrução da nação, reduzimos o custo dos remédios para idosos, expandimos o acesso à saúde em número recorde. Aprovei a primeira lei de contenção de porte de armas em três décadas. Indiquei a primeira juíza negra da Suprema Corte e elaborei a legislação mais robusta de proteção ao clima no planeta.”
Atos que tornaram mais do que um detalhe curioso o moderado conciliador ter encerrado a campanha tendo como derradeiros defensores a militância organizada e a esquerda democrata, concentrada nas bancadas afro-americanas e latinas no Capitólio, com destaque para o senador Bernie Sanders, seu mais formidável adversário nas primárias de 2020. “Joe Biden serviu o país com honra e dignidade. O primeiro presidente a se juntar aos trabalhadores em greve em um piquete foi também o que mais implantou medidas em favor dos mais pobres. Muito obrigado, senhor presidente”, escreveu Sanders pouco após o anúncio de Biden.
Do outro lado do tabuleiro, doadores, deputados e senadores preocupados com suas disputas em novembro pediram publicamente a retirada de Biden e no próprio domingo articulavam nomes para a provável chapa de Kamala, se confirmada pela maioria dos delegados. Entre os mais cotados estão o senador Mark Kelly, do Arizona, e o governador Josh Sapiro, da Pensilvânia, dois estados decisivos. Foram dos primeiros a declarar apoio a Kamala, ainda ontem, e têm perfil mais moderado do que aquela que poderá se tornar a primeira mulher, negra e de origem asiática presidente dos EUA. E nem Kelly nem Shapiro pressionaram Biden pelo fim de sua reeleição.
'Mentalidade de porta de fábrica'
Joseph Robinette Biden Jr. nasceu em Scranton, no nordeste da Pensilvânia, área afetada duramente pela desindustrialização. A “mentalidade de porta de fábrica”, gosta de repetir, pautou sua vida política, iniciada em Delaware, para onde a família descendente de irlandeses rumou quando o futuro presidente entrava na adolescência. Se formou em Direito e deixou a defensoria pública para derrotar, em 1970 e 1972, incumbentes republicanos, na Câmara e no Senado, impulsionado pela implosão do governo Richard Nixon.
Nunca mais saiu de Washington. A capital foi cenário de seu ápice — as três mais recentes vitórias democratas para a Presidência, como vice de Barack Obama, em 2008 e 2012, e no topo, em 2020, quando definiu sua argumentação central como a de que votar nele contra Trump era ato de defesa da democracia americana. E também de sua ruína política — com a decadência física e mental explicitadas na incapacidade de finalizar raciocínios no debate e nas gafes em cerimônias oficiais, como quando identificou o presidente Volodymyr Zelensky, da Ucrânia, como Vladimir Putin, da Rússia.
Personagem trágico, sua decisão de abandonar a reeleição foi saudada no domingo pelo New York Times em editorial tão importante para se entender o estadista quanto o que, no mesmo espaço, pediu-lhe, após o debate, a grandeza da renúncia. No texto de domingo, o mais influente diário do planeta celebrou o fato de “Biden ter feito o que Trump jamais fará: colocar os interesses do país à frente de seu próprio orgulho e ambição política”.
Biden e Kamala assumem seus postos na Casa Branca após a posse
‘Sacrifício heroico’
De modo reservado, um cacique democrata disse no domingo que a carta de Biden foi bem recebida pela militância, que já trabalha seu ato como “sacrifício heroico”. E que a demora para o presidente tomar a decisão — sua fritura foi alimentada desde o debate, de forma discreta, por Obama, e mais publicamente, pela ex-presidente da Câmara Nancy Pelosi — não foi percebida apenas como teimosia ou vaidade, mas também como estratégia. Biden teria começado a conversar com a família sobre a impossibilidade de vitória que as pesquisas mostravam há duas semanas. Mas não quis oferecer aos republicanos a oportunidade de usar a convenção do partido, encerrada na última quinta-feira, para bater duro, em horário nobre, no eventual substituto(a).
Até a noite de domingo, apenas Kamala havia anunciado publicamente sua pré-candidatura no lugar de Biden. Mas os efeitos do terremoto ultrapassaram os limites da fronteira partidária. Na arena da convenção republicana, em Milwaukee, o único porém para a certeza da vitória era uma mudança na cabeça da chapa adversária.
Com o fim da segunda campanha de Biden à Presidência, a desconfiança com a idade avançada migra para Trump, que tem 78 anos. O republicano passa a carregar o incômodo título de candidato mais velho a tentar a Casa Branca. Ainda que as pesquisas mostrem Kamala, de 59 anos, atrás do candidato, a distância cai de 4% para 2%.
Estratégia republicana
Estrategista republicano e assessor da Presidência nos anos Bush, Scott Jennings ofereceu, na CNN, pistas para a reação da campanha de Trump à eventual candidatura Kamala: “Bater na tecla de que ela é Biden com outro nome. Que foi por ele nomeada czar da imigração quando as fronteiras bateram recordes de entrada de imigrantes em situação irregular”. Ele também crê que se questionará a motivação da vice de não ter dividido com a população o real estado de saúde do presidente. E por que um partido tão cioso da defesa da democracia “ignora os votos nas primárias de milhares de filiados”.
Também deve-se aumentar na oposição a pressão para a renúncia de Biden da Casa Branca. No domingo o senador J.D. Vance, vice na chapa de Trump, afirmou: “Se ele não tem condições de fazer campanha contra nós, por que é apto a seguir no comando do país?”