Prestes a fazer seu primeiro discurso aos EUA depois de desistir da reeleição, o presidente dos EUA, Joe Biden, viveu dias turbulentos antes de anunciar a decisão que mudou uma campanha que, até aquele momento, parecia mais favorável ao republicano Donald Trump. Ao longo do fim de semana, a relutância em permanecer na disputa foi dando espaço a argumentos pró-desistência, vindos até de aliados próximos. Após o anúncio, ele foi crucial para construir o apoio em torno de Kamala Harris, evitando traumas no Partido Democrata.
Ainda na sexta-feira, segundo pessoas próximas a Biden, ele recebeu telefonemas de parlamentares aliados, incluindo a senadora Elizabeth Warren, a quem garantia que seguiria até o fim — o democrata citava a resiliência que marcou sua longa vida política e como ele conseguiu dar a volta por cima mesmo em momentos que pareciam intransponíveis.
Em uma ligação com Ron Klain, ex-chefe de Gabinete do democrata e que se tornou um conselheiro próximo, ouviu o pedido para que não saísse da disputa. A resposta foi direta.
— Essa é minha intenção. Isso é o que farei — disse Biden, segundo o New York Times.
O presidente vinha de uma semana terrível: quase 40 parlamentares defendiam publicamente que abandonasse a disputa e um artigo do ator e ativista democrata George Clooney, no qual dizia ser impossível vencer a eleição com ele, deu contornos dramáticos à crise interna. Uma nova sequência de gafes lhe garantiu espaço negativo no noticiário, mesmo durante a semana em que os republicanos coroaram Donald Trump, quando teoricamente estariam menos exposto. Em meio a uma série de desastres, Biden, de 81 anos, foi diagnosticado com Covid-19 pouco antes de um discurso.
“Espero retomar a campanha na semana que vem para continuar expondo a ameaça do Projeto 2025 de Donald Trump, ao mesmo tempo em que defendo meu passado e a visão que tenho para os EUA”, disse Biden, em comunicado na sexta-feira. “As apostas são altas e a escolha é clara. Juntos, vamos ganhar."
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Nos bastidores, o clima era menos otimista.
No sábado, os líderes da campanha do democrata, incluindo a governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, e o deputado Jim Clyburn fizeram uma reunião na qual já previam notícias impactantes nos dias seguintes. Uma semana antes, Biden, segundo o New York Times, havia pedido um pouco mais de tempo durante um telefonema com o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, no qual ouviu que muitos congressistas estavam dispostos a desistir de sua campanha.
Menos de 24 horas antes de confirmar a desistência, Biden conversou com assessores, com sinais de que cederia à pressão. No domingo, telefonou para Kamala Harris e para os gestores da campanha, além de membros de sua equipe, antes de anunciar ao mundo que seria o segundo presidente da História dos EUA a não concorrer à reeleição.
A carta em que formaliza a saída da corrida, segundo o New York Times, foi finalizada na manhã de domingo, e lida a alguns assessores antes de ser publicada no X.
— Venham até mim com o trabalho e vamos fazê-lo — disse-lhes o presidente, segundo o New York Times.
A rápida declaração interna daria o tom de suas ações futuras, voltadas agora a garantir que Kamala fosse a candidata democrata. Ao mesmo tempo em que foi alvo de pesadas críticas de seus colegas de partido, Biden tinha muitos aliados, e alguns não pareciam dispostos a ver uma passagem de bastão como a que estava se desenhando. Agora, precisavam ser apaziguados.
— No começo fiquei com raiva, porque trabalhamos muito para dar a ele o tipo de apoio que o faria ficar. Fomos informados até o último minuto que ele iria ficar — disse ao site Politico a deputada Maxine Waters. — E depois que me acalmei, fiquei bem, porque ao fazer isso [desistir] ele apoiou Kamala. E eu pensei, bem, isso é ótimo.
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O aval quase imediato a Kamala foi crucial para silenciar os que defendiam uma disputa aberta na convenção partidária e foi seguido por uma série de apoios do alto escalão democrata, como os do ex-presidente Bill Clinton, da ex-secretária de Estado e candidata em 2016, Hillary Clinton, além de deputados, senadores e governadores.
A ala progressista do Partido Democrata, que estava ao lado de Biden até o fim, rapidamente se posicionou com a vice-presidente, assim como doadores de campanha e os milhares de delegados que lhe garantiram o número necessário para a indicação, na segunda-feira. Os endossos de Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara, e dos líderes da minoria na Câmara, Hakeem Jeffries, e da maioria no Senado, Chuck Schumer, consolidaram um processo que parecia garantido desde o início.
— Entendo que as pessoas estão céticas hoje em dia, mas isso foi verdadeiramente orgânico — disse o senador Chris Murphy ao Wall Street Journal. — Quero dizer, soubemos disso [desistência] quando todo mundo soube. Não conversei com mais ninguém antes de apoiá-la, cerca de 60 minutos depois.
Biden não precisou de grandes gestos para formar a linha de frente de defesa de Kamala, mas sua relação próxima com a vice, construída ao longo de anos e com vários solavancos, pesou muito. A própria desistência deu ao presidente uma aura de sacrifício pessoal, exaltado em praticamente todas as notas e discursos. Agora, ele parece disposto a fazer o possível para garantir que ela seja eleita.
— O nome mudou na cabeça da chapa, mas a missão não mudou em nada — disse Biden, em conversa à sua equipe de campanha na segunda-feira, afirmando ainda que "não vai a lugar algum". — Eu sei que as notícias de ontem [domingo] foram surpreendentes, mas era a coisa certa a fazer.
Alguns assessores choraram durante a conversa, ao mesmo tempo em que corriam para preparar os novos materiais de divulgação. Biden também pediu que a equipe “acolhesse” Kamala, que visitou o comitê naquele mesmo dia — segundo o New York Times, o clima de entusiasmo geral entre os democratas desde domingo, visto também na alta histórica nas doações, também foi visto entre as pessoas envolvidas diretamente na campanha.
— Esta campanha foi construída para eleger Joe Biden. Mas agora é necessário reequipar-se para eleger Kamala Harris, que é uma mulher negra e [com ascendência] do sul da Ásia, no ano de 2024 — disse um assessor democrata à CNN.
(Com The New York Times)