O ex-presidente dos EUA Donald Trump indicou não ter intenção de participar de um segundo debate com a candidata democrata Kamala Harris depois de ter mantido na terça-feira o primeiro confronto cara a cara com a rival — que, afirmou, foi "manipulado" pela rede de televisão ABC. Em meio a uma onda de desânimo entre setores republicano pelo desempenho do presidenciável e pesquisas de opinião pós-debate que apontam vitória de Kamala, Trump encontrou no veículo de comunicação a justificativa para seus deslizes.
— Foi um acordo manipulado, como eu presumi que seria. Você vê pelo fato de que corrigiam tudo [que eu dizia], mas não a corrigiam — declarou Trump ao canal Fox News na madrugada de terça-feira, acrescentando posteriormente: — Não sei se quero fazer outro debate.
O debate televisivo foi amplamente apontado como um momento favorável a Kamala por analistas de política americana ao redor do mundo. Um ponto comum da maioria das análises é de que a democrata conseguiu manter Trump na defensiva, ocupando-o com temas desconfortáveis, sem capacidade de se lançar para a ofensiva. Embora o impacto direto na votação seja incerto, pesquisas realizadas ao fim da transmissão indicam que o público americano também viu vantagem democrata: uma pesquisa-relâmpago realizada pela CNN com 600 eleitores apontou que 63% avaliaram que Kamala teve um desempenho melhor no embate com Trump (visto como vencedor por 37%).
Um outro levantamento, realizado pelo instituto Trafalgar, deu vantagem a Kamala de 55,3% contra 42,5% de Trump (42,5%) — 2,2% viram empate. A pesquisa foi feita com 2,2 mil potenciais eleitores dos sete estados-pêndulo (que, por não votarem tradicionalmente por um partido, são cruciais na votação de novembro). Um grupo focal organizado pelo Washington Post com eleitores de estados-pêndulo também produziu resultados semelhantes: dos 25 participantes, 23 consideraram que Kamala venceu. Antes do debate, dez pensavam em votar em Trump — número que caiu para seis.
A repercussão negativa da aparição de Trump ecoou entre fileiras republicanas. Deputados do partido ouvidos pelo site americano The Hill, especializado em política dos EUA, demonstraram frustração com a participação do presidenciável, reconhecendo que a democrata se saiu melhor no confronto. Eles pediram anonimato para descrever um cenário de desapontamento entre os parlamentares.
"Eu estou apenas triste. Ela [Kamala] sabia exatamente onde nos 'cortar' para nos ferir. Apenas totalmente decepcionante que ele não esteja mais calmo como no primeiro debate", disse um dos deputados ouvidos pelo veículo, em referência ao embate de junho com o presidente Joe Biden, que desistiu de buscar a reeleição no mês seguinte. Um outro parlamentar citado pela publicação afirmou: "Ela fala conosco como se fôssemos crianças, mas está fazendo um bom trabalho provocando-o. Ele [está] certo na política, mas não consegue manter uma mensagem (...). Não tenho certeza se houve muitas mudanças, mas não foi um bom desempenho."
Em uma breve análise à agência de notícias Reuters, Marc Short, o ex-chefe de Gabinete do vice-presidente Mike Pence, especificou que Kamala pode ter garantido não apenas um cenário favorável para ela, mas também para a base democrata no Congresso.
— Trump perdeu a oportunidade de se concentrar contra [a administração] Biden-Harris na economia e na fronteira. Em vez disso, caiu na armadilha dela, indo atrás de 'tocas de coelho' sobre a negação das eleições e imigrantes comendo animais de estimação. Harris passou no teste de parecer presidencial, e Trump não expôs suas posições historicamente radicais. O impacto provavelmente se estenderá às disputas competitivas na Câmara — disse.
Apesar das avaliações, houve quem defendeu o debate televisivo como uma vitória de Trump. Em publicações nas redes sociais, deputados mais próximos ao ex-presidente celebraram o desempenho — a deputada Elise Stefanik, deputada por Nova York, por exemplo, classificou a participação do candidato como "forte".
"Trump está indo muito bem e está certo em termos de política, mas esse debate está distorcido!", escreveu a deputada Nicole Malliotakis, também de Nova York, em uma publicação na rede social X.
Pouco após o fim do debate, o ex-presidente tentou imediatamente convencer jornalistas reunidos na sala de espera montada na emissora que havia vencido o debate. Trump afirmou que "se divertiu" e que foi o seu "melhor debate de todos os tempos". Na sequência, começou a ofensiva conta a emissora americana, afirmando que o debate na realidade foi "3 contra 1", referindo-se aos apresentadores, que realizaram uma checagem dos fatos em tempo real.
Figuras de peso no Partido Republicano rapidamente embarcaram na narrativa exposta pelo ex-presidente. O governador da Flórida e ex-pré-candidato republicano, Ron DeSantis, acusou os apresentadores Linsey Davis e David Muir de atuarem de forma parcial.
"Eles só perguntaram a Donald Trump para tentar derrubá-lo. Eles tentam checar os fatos, mas checaram fatos em coisas em que ele estava certo (...) Eles nunca checaram os fatos de Kamala", afirmou DeSantis, em entrevista à Fox News.
Em declarações ao site americano Politico, o senador Tom Cotton, do Arkansas, e o conselheiro de Trump David Bossie afirmaram que "foi três contra um" e "dois moderadores agiram como agentes da campanha de Kamala", respectivamente.
- Debate Kamala x Trump nos EUA: Veja como foi o debate no tempo real do GLOBO
Uma contagem citada pelo New York Times aponta que Trump fez mais de 20 afirmações falsas ao longo do debate, enquanto Kamala teria feito comentários de perfil factualmente questionáveis e com potencial enganosos, mais do que flagrantemente falsos, o que explicaria em parte a diferença no número de intervenções.
Ainda nos bastidores após o encerramento do debate, integrantes da campanha de Kamala comemoraram o desempenho da candidata. Alguns, como o governador da Califórnia, Gavin Newsom, destacaram como a democrata teve facilidade em provocar o adversário. Outros, afirmaram que ela estaria interessada em um novo embate cara a cara.
— Foi divertido. Vamos fazer de novo — disse o conselheiro de Kamala, Brian Fallon.
Trump, por outro lado, se mostrou menos aberto a uma nova disputa um contra um. À rede Fox News, o ex-presidente disse que não estaria interessado "porque ganhou o debate por muito", afirmando que o interesse da campanha de Kamala seria um reconhecimento de derrota.
—A pessoa perdedora, o lutador, o debatedor, eles sempre pedem uma revanche. Eu ganhei o debate — disse Trump. (Com NYT, El País, Bloomberg e AFP)