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'Em Cali, autoridades civis saíram de cena e o Exército assumiu controle da cidade', diz socióloga colombiana

Aura Hurtado, pesquisadora da Fundação Paz e Reconciliação (Pares), explica as razões que levaram cidade a se tornar epicentro dos protestos e palco dos confrontos mais violentos no país
Um policial se posiciona entre indígenas e manifestantes que se opõem a bloqueios durante protestos em Cali, Colômbia Foto: LUIS CARLOS AYALA / AFP
Um policial se posiciona entre indígenas e manifestantes que se opõem a bloqueios durante protestos em Cali, Colômbia Foto: LUIS CARLOS AYALA / AFP

Os protestos que tomaram há duas semanas as ruas da Colômbia são mais fortes e violentos em Cali , capital do departamento (estado) do Valle do Cauca e terceira cidade mais populosa da Colômbia, com mais de 2,34 milhões de habitantes. Cali é também onde as grandes desigualdades do país estão mais evidentes, afirma Aura Hurtado, socióloga e historiadora colombiana, e onde o Exército assumiu o controle da repressão aos protestos desde o início das manifestações, em 28 de abril. Segundo a pesquisadora da Fundação Paz e Reconciliação (Pares), a descentralização dos protestos na cidade e a violenta resposta do Estado ornaram Cali o epicentro das manifestações.

O que explica o fato de Cali ser o epicentro dos protestos?

Há dois pontos que distinguem a cidade das demais onde ocorrem as manifestações. O primeiro é a descentralização dos protestos, que deixaram os principais centros e avenidas, além de pontos como estádios, universidades e a prefeitura, e ganharam a periferia de Cali. Ali, houve o surgimento de novas práticas políticas de organização, os espaços começam a ter outros significados.

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Existem hoje até 18 pontos de concentração de protestos em Cali, onde as pessoas se organizam para evitar a entrada violenta da polícia. Os jovens estão na linha de frente, tentando conter a violência dos militares. Todos esses locais ganharam novos nomes. Um dos mais emblemáticos recebeu o nome de Porto Resistência, local que era conhecido por ser um ponto de bares e baladas. Hoje, Porto Resistência virou uma referência para toda a cidade, e também fora de Cali tornou-se um nome que passou a ter ressonância. Os protestos conseguiram transformar essa relação entre cidade e espaço. São locais criados para falar de política, de democracia, de direitos, onde se organizam ações comunitárias, com forte presença feminina.

A segunda singularidade é a resposta do Estado. Em Cali houve militarização desde o primeiro dia de protestos, que foram questionados tanto pelo prefeito quanto pela governadora. Houve desde o início uma forte oposição por parte das autoridades locais aos protestos. Com isso, autoridades civis saíram de cena e quem assumiu o controle da cidade foi o Exército, com seus altos oficiais, como o comandante-geral do Exército e o ministro da Defesa. Em Siloé, maior favela da cidade, há uma memória muito recente de massacres e chacinas militares. Isso também abriu muitas feridas.

Há forte presença de movimentos sociais na cidade? Qual a origem desses movimentos?

Cali fica em uma região de constante mobilização, tanto por parte de grupos indígenas, que em diferentes momentos realizaram bloqueios na principal estrada de acesso à cidade, a Panamericana, a leste, quanto da população negra e de deslocados de conflitos no campo, que vivem na região do Pacífico, a oeste, onde há um nível de pobreza altíssimo e altos índices de violência. Mesmo com suas diferenças, são grupos que lutam por direitos básicos mínimos, como acesso a água potável.

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Cali faz parte de tudo isso, dessa mobilização forte e permanente, seja de negros ou indígenas, dependendo da região. Ao mesmo tempo, tem sido uma cidade receptora de população deslocada pela violência no campo, expulsa primeiro pelas Farc e depois por grupos paramilitares. Mesmo com suas lutas e características próprias, esses grupos têm em comum a pobreza extrema. Além disso, há uma grande população de jovens sem acesso à educação, sem emprego formal, que trabalham nas ruas, mães e pais adolescentes que sofrem as consequências dessa pobreza extrema e da forte violência policial e urbana.

Vale ressaltar, no entanto, que, embora os protestos sejam formados por esses grupos, não há necessariamente uma bandeira única. Mesmo assim, veremos, quando as vítimas tiverem nome e sobrenome, que os mortos têm cor de pele, e ficará claro o viés racista da polícia.

Cali é também onde há maior resposta policial aos protestos. Por quê?

O Estado está testando novas armas. Dados do novo Orçamento para a Esmad [esquadrão antimotim da Polícia Nacional] indicam que ele é altíssimo. São novas armas que se apresentam como não letais, mas que já vimos que são sim letais e cujo uso em manifestações não está dentro da legalidade. Dentro dessa fórmula de assistência militar na contenção dos protestos, o governo se aproveita de um conceito legal para a militarização da cidade. É o mesmo uso que a direita chilena empregou para responder aos protestos de 2019. Em Medellín e Bogotá também há operações em que o Exército assume o controle, principalmente nas favelas, mas nunca nesse nível como em Cali.  Vimos também, em vídeos divulgados na internet, ações de grupos de infiltrados. Em Cali, um caminhão da policia, com agentes sem farda, foi filmado chegando a um dos protestos, e o governo foi obrigado a admitir que eram policiais.

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Há relatos de infiltrados como parte da ação da polícia contra indígenas no domingo...

Há vídeos que mostram a caravana de indígenas sendo alvejada a tiros por pessoas organizadas em camionetes, sem farda, mas que eram protegidas por militares enquanto atacavam. Há ainda um discurso extremamente racista, que chama os movimentos indígenas de "índios narcotraficantes que querem dinheiro do Estado". O que aconteceu no domingo é extremamente grave e preocupante. E a postura do prefeito foi afirmar que os problemas dos indígenas não são os problemas da cidade.