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Em meio a expectativas de refundação do país, Constituinte do Chile dá a largada

Uma folha em branco aguarda os 155 constituintes chilenos. Ao começarem os trabalhos neste domingo, eles têm o desafio de, em um prazo curto, conseguirem se organizar e alcançar acordos
O antigo Congresso Nacional do Chile, que será reutilizado, e será uma das duas sedes da Convenção Constitucional, ao lado do Palácio Pereira, edifício neoclássico do século XIX Foto: JAVIER TORRES / AFP
O antigo Congresso Nacional do Chile, que será reutilizado, e será uma das duas sedes da Convenção Constitucional, ao lado do Palácio Pereira, edifício neoclássico do século XIX Foto: JAVIER TORRES / AFP

Sabe-se do lugar, da hora, da duração do encontro e dos participantes. Há umas poucas regras definidas: respeitar os tratados internacionais vigentes, manter um modelo de democracia republicana e aprovar as novas leis por um quórum de dois terços. Mas isso é tudo: incumbida de escrever uma nova Carta Magna, a Convenção Constitucional do Chile realiza a sua primeira sessão neste domingo tendo à sua frente uma folha em branco.

Uma aura de refundação do país emana de setores da sociedade e de vários dos 155 constituintes, e há propostas da mais diversa natureza, desde a transição para um sistema semipresidencialista até um novo recorte territorial, com a substituição das 16 regiões chilenas por três macrorregiões. A mudança do modelo socioeconômico, do funcionamento do sistema político e a representatividade das minorias estão no topo da agenda, a reboque das manifestações que eclodiram no final de 2019, as maiores da História do país.

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Inovações diversas nutrem as expectativas. Para substituir a Constituição de 1980, escrita sob a ditadura de Augusto Pinochet, o Chile terá a primeira Constituinte com paridade de gênero do mundo. Os 10 povos indígenas do país estarão representados por 17 deputados. Grande parte dos constituintes eleitos concorreu em candidaturas independentes, fora dos partidos, e o seu conjunto é considerado mais plural e representativo do que o do atual Congresso.

— Há bastante esperança posta no processo, relacionada a solucionar o modelo social e de desenvolvimento, a como o Estado trata as pessoas e a como a política se relaciona com a sociedade. O que se está por ver é em que medida os constituintes podem satisfazer essas demandas — afirmou Juan Pablo Luna, cientista político da PUC chilena, em um debate nesta sexta-feira. — Importa também o simbólico, uma mudança da relação do Estado e dos representantes, assim como do setor produtivo, com o resto da população. Demandam-se não mudanças imediatas, mas uma mudança de lógica, que vá gerando transformações no cotidiano.

Ao lado das esperanças, elementos do processo constituinte também despertam preocupação. Embora progressista, em sua grande maioria — a direita não chegou a alcançar o quórum mínimo de um terço para vetar leis na eleição de maio —, a Convenção Constitucional é composta por grupos muito heterogêneos, com dificuldade de diálogo entre si. O prazo de nove meses, prorrogáveis por mais três, é considerado apertado, ainda mais se considerada a exigência de participação da cidadania.

Há também grande desconfiança sobre o processo institucional de alguns atores, como dos representantes da Lista do Povo, composta por nomes que emergiram das ruas. Eles propuseram que a antiga sede do Congresso Nacional, edifício no centro de Santiago que hospedará a Constituinte, seja cercado por manifestantes neste domingo.

“As ações de alguns constituintes em certo sentido refletem a consciência de que há princípios fundamentais em jogo que são simplesmente irreconciliáveis com o status quo e com aqueles que o defendem. Por isso, qualquer ação dentro dos parâmetros vigentes (sejam normas, instituições ou compromissos) é lida como uma resignação”, disse Mariana Canales, pesquisadora do Instituto de Estudos da Sociedade, de Santiago, em um artigo recente. “Embora não saibamos quais serão as atitudes e posições majoritárias na Convenção, um cenário como esse parece desesperador, pois sugere que não haverá vontade de se chegar a acordos.”

Desconfianças entre deputados e o governo conservador de Sebastián Piñera abundam, e as desavenças começam já na cerimônia de abertura. Nos últimos dias, brotaram várias queixas por questões como o financiamento da Constituinte, a hospedagem de quem viaja de regiões distantes para Santiago e o papel de um representante do Executivo no evento — o secretário-executivo Francisco Encina, que é acusado de ignorar pedidos dos povos originários no cerimonial.

As demandas dos povos indígenas têm tido peso importante nas discussões, o que é um indicativo da elevada chance de que, a exemplo da Bolívia, o Chile pode se tornar um Estado plurinacional após o processo constituinte. Por ora, nesta sexta-feira, após várias reuniões por videoconferência, cerca de 90 constituintes organizados num grupo chamado Voz do Povo publicaram uma carta de sete páginas sobre o processo. Eles apresentam propostas como a presença das bandeiras dos 10 povos indígenas durante a abertura e também a leitura de um texto com uma referência aos “povos originários violados, saqueados e excluídos pela invasão do império espanhol e do Estado do Chile”, a ser seguido por um minuto de silêncio.

Os desafios começam de fato na segunda-feira, que será o primeiro dia de trabalho. A Convenção Constitucional ainda não tem um regulamento interno de funcionamento, o que significa que, em teoria, os deputados podem passar todo o tempo discutindo, ou irem para casa cedo, sem nada legislar, indefinidamente. Para evitar isso, a primeira tarefa da Constituinte será definir o seu próprio regulamento. Esta etapa deve envolver questões como a divisão em comissões, quais temas elas vão abordar, e quais serão os quóruns de aprovação das leis nesses grupos, antes de ir a plenário.

A adoção do regulamento é uma atividade bastante complexa e em geral demorada — no caso boliviano, por exemplo, levou sete meses —, o que tem provocado receio de que cause atrasos na atividade constituinte em si. Há muitas propostas, como, por exemplo, uma mesa rotativa, e é quase certo de que será montada uma comissão para definir essas normas. Para não travar os demais trabalhos, há propostas de regras transitórias, que definiriam o uso da palavra, a abertura das sessões, a ordem dos debates e seu encerramento.

Enquanto não se sabe como a Constituinte se organizará, uma mesa diretiva deve ser eleita na segunda-feira, e um presidente será eleito, com quórum simples. Na carta da Voz dos Povos, propõe-se que todos os 155 constituintes poderiam ser elegíveis. Os cinco mais votados avançariam a um segundo turno, e, em seguida, os dois nomes mais votados iriam para o terceiro.

Um dos nomes mais fortes para a presidência até agora é o da acadêmica e linguista mapuche Elisa Loncon, que, eleita na lista reservada para o seu povo, atraiu para si o apoio da nova esquerda da Frente Ampla. Alguns nomes alternativos circulam, como a professora universitária de biologia Cristina Dorador (independente da região de Arica, ao Norte) e a jornalista e fundadora da Transparência Internacional chilena Patricia Politzer, também independente. A direita, enquanto isso, pretende apresentar a candidatura Harry Jürgensen, do Renovação Nacional, partido de Piñera.

A participação popular é outra grande exigência, assim como outro desafio. Segundo o cientista político da PUC chilena Gabriel Negretto, especialista em processos constituintes, não há precedente mundial de uma Assembleia Constituinte que tenha incluído a participação popular e sido concluída no prazo de um ano. Para dar subsídios a quem participa do processo, ao menos oito centros de estudos apresentaram recomendações sobre a necessidade de transparência e de participação cidadã. Algumas propostas incluem plebiscitos vinculativos quando houver desacordo sobre determinada matéria crucial. Ao cabo do processo, um plebiscito de encerramento precisará aprovar a nova Carta.

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Em meio a tantos obstáculos, há quem diga que as dificuldades são superestimadas, e que o processo pode lograr mais êxito do que imaginam os receosos. Uma das esperançosas é a deputada constituinte Cristina Dorador. Em uma entrevista à Rádio Pauta nesta semana, ela afirmou que ter tantos nomes de fora dos partidos políticos é algo “muito interessante, porque nos dá liberdade e abertura para gerar novas formas de diálogo e de relações políticas”.

— Os desafios da Convenção são enormes e ultrapassam a lógica dos partidos políticos tradicionais. Mas precisamente eles não estiveram à altura dos desafios que tivemos de enfrentar — ela afirmou. — Não somos um Parlamento e não vamos agir como tal. As pessoas não votaram nisso, votaram num grupo de pessoas que vão ajudar escrever a nova Constituição. Todo o Chile é constituinte.