Exclusivo para Assinantes
Mundo

Entrevista: Manipulação on-line começou com governos, afirma crítico da web

Para Evgeny Morozov, Cambridge Analytica é peixe pequeno no negócio de análise e uso de dados pessoais obtidos na internet
Morozov é um cético do esperado efeito democratizante de internet Foto: Divulgação
Morozov é um cético do esperado efeito democratizante de internet Foto: Divulgação

Quando a internet ainda era vista como uma promessa de democratização da política e das relações humanas, o pesquisador dos efeitos sociais e econômicos da tecnologia Evgeny Morozov já era um cético a esse respeito. Com o tempo, o autor de "Net delusion: the dark side of internet" (A ilusão da net: o lado negro da internet), acredita ter visto realizadas suas piores previsões. Em entrevista ao GLOBO, ele afirma que os maiores clientes da manipulação de dados obtidos on-line são os governos, e que a Cambridge Analytica  — que está no centro do escândalo de vazamento de dados de usuários do Facebook  — é peixe pequeno nesse mercado. Morozov acredita que a dependência de Facebook, Google e Amazon impede que a saída dessas redes seja uma escolha real para o consumidor. Nascido na Bielorússia, Morozov vive hoje nos Estados Unidos, onde colabora com veículos como "The New Republic" e "The New York Times".

Nós sempre soubemos que o Facebook e outras empresas de tecnologia coletam os nossos dados. Por que a surpresa com o caso da Cambridge Analytica?

Eu acho que muito da surpresa é provocada pelo escândalo estar relacionado com a eleição do presidente americano, Donald Trump. Então, a principal razão de o caso ter virado manchete em todos jornais do mundo é porque envolveu uma empresa contratada pela campanha republicana. Dito isso, eu acho que muitas pessoas, especialmente nos EUA, estão buscando explicações sobre como Trump conseguiu vencer. E esses dados, utilizados pela Cambridge Analytica, foram um dos instrumentos. E isso cria um apelo, especialmente entre os apoiadores da Hillary Clinton, por que basicamente explica o que aconteceu. Do ponto de vista sociológico, o debate tem mais a ver com o processo político americano do que com tecnologia, proteção de dados e privacidade.

Então não podemos dizer que a Cambridge Analytica realmente exerceu papel determinante na eleição do Trump?

Nós não temos nenhuma evidência para afirmar isso. Não é possível dizer que foi determinante nem que o efeito foi desprezível. O que nós sabemos é que eles apresentaram anúncios para eleitores indecisos, mas não sabemos quão eficazes eles foram. E essa análise também depende da comparação, se é com anúncios digitais em outros sites ou serviços em outras plataformas. Se for comparar com o peso da Fox News, por exemplo, eu posso dizer que a contribuição da Cambridge Analytica foi mínima.

Essa falta de evidências permitiu que os executivos da Cambridge Analytica fizessem alegações sobre o impacto do serviço deles que são impossíveis de verificar. É claro que eles podem ir a encontros com clientes e dizer que podem eleger qualquer pessoa só usando os dados. Mas eu acho que eles supervalorizavam os seus feitos. Muito do que vimos sobre a efetividade dos anúncios on-line não é favorável. Grandes marcas estão cada vez mais percebendo que outras formas de publicidade são mais eficientes e estão se afastando de plataformas como Facebook e Google.

A Cambridge Analytica é apenas uma das empresas que usam dados coletados no Facebook. Se as pessoas realmente estiverem preocupadas com isso, é hora de deletar o Facebook?

Eu acho que isso representa uma escolha do consumidor, mas levanta questões sobre a nossa crescente dependência dessas plataformas. Na realidade, o que essas companhias fazem — e não estou dizendo sobre empresas pequenas como a Cambridge Analytica, mas sobre Google, Facebook e Amazon — é fornecer infraestruturas digitais que organizam as nossas vidas, os nossos trabalhos e todas as nossas necessidades. Se olharmos para o que essas empresas fazem, estão cada vez mais dentro das nossas casas, preenchendo virtualmente todos os domínios da nossa existência. E quando a nossa dependência é tão grande, e os serviços que oferecem são baratos ou gratuitos, a escolha do consumidor se torna problemática.

E essas infraestruturas exigem investimento maciço. Nós falamos sobre realidade virtual e serviços digitais imateriais que são muito caros para serem desenvolvidos. Companhias como Amazon e Google estão entre os maiores investidores em pesquisa e desenvolvimento do mundo. Apenas a Amazon investe anualmente US$ 15 bilhões. Com esses números, não é possível esperar que os consumidores abandonem essas plataformas e migrem para outro lugar, porque esse lugar não existe.

É claro que deletar a conta no Facebook é uma forma de protesto, mas não uma ação política. Como ação política nós temos que considerar que existem interesses econômicos em jogo, com pessoas ficando muito ricas graças a essas plataformas, mas também muitas pessoas se tornando vulneráveis politicamente, psicologicamente, economicamente.

No Twitter, o senhor comentou sobre a Palantir. Que companhia é essa?

Palantir é uma das maiores e mais valorizadas start-ups do mundo, de acordo com algumas estimativas está avaliada em mais de US$ 20 bilhões. A companhia foi fundada por Peter Thiel, uma pessoa próxima ao presidente Trump, e tem a maior parte do seu faturamento em contratos com o governo. Eles fazem acordos com agências americanas e ajudam com a análise de dados. Identificam como serviços podem ser otimizados, encontram soluções para problemas, tudo feito com a análise de dados. É um player muito poderoso.

Este é um dos aspectos sobre o escândalo da Cambridge Analytica. A empresa controladora da Cambridge Analytica é o Grupo SCL, também um grande player nos contratos com o governo. Eles trabalharam para a Otan, trabalharam para o Departamento de Estado americano... Grande parte do crescimento dessa indústria na última década aconteceu graças a investimentos maciços de governos na criação de ferramentas on-line de manipulação, que foram usadas para convencer jovens do Oriente Médio a não seguirem a al-Qaeda ou para os iranianos não apoiarem seu presidente. Isso é uma grande indústria. Os espiões sempre apontam o dedo para a Rússia e o Kremlim, pelo fato de eles fabricarem notícias falsas, mas governos da Europa Ocidental e dos EUA atuam nisso há mais tempo, e agora parte desse investimento se voltou contra eles.

É possível dizer que serviços como o Facebook se transformaram em armas de vigilância em massa?

Eu não colocaria desse jeito. Acho que existem práticas deficientes, que podem ser consertadas se as empresas investirem mais dinheiro na contratação de pessoal, no policiamento das plataformas, assegurando que os dados não possam circular fora de suas fronteiras e assim por diante. Não seria apropriado dizer que se tratam de “armas”. Qualquer pessoa pode explorá-las: hackers russos, o governo chinês ou bilionários americanos.

Mas no fim, se quisermos ser invulneráveis, precisamos de regulação, com regras restritas sobre o que elas podem ou não fazer. Ou criar um sistema de publicidade diferente do que temos hoje. Se você for criar uma plataforma cujo princípio não seja a publicidade, não precisa acumular todos esses dados nem desenhar o seu negócio para maximizar o número de cliques. São esses princípios que guiam a publicidade on-line que abrem espaço para as notícias falsas e o uso indevido de dados.

Mas é possível superar esse modelo de serviços “gratuitos” em troca de dados pessoais?

Eu acredito que algumas dessas grandes plataformas, incluindo Google e Facebook, ficariam felizes de abandonarem a publicidade e migrarem para outras áreas, talvez cobrando uma taxa pelo acesso ou oferecendo seus serviços que são muito mais avançados para governos e empresas. Agora, Google e Amazon já têm grande parte do faturamento vindo dos serviços de nuvem e inteligência artificial. E as margens de lucro por dólar nesses negócios são muito maiores que na publicidade.

O senhor sempre fala sobre o uso da internet por governos autoritários. Este escândalo mostra que a internet também ameaça as democracias?

O problema não é a internet, é este modelo específico de capitalismo, intensivo no uso de dados que podem ser explorados para a vigilância, que ameaça a democracia.