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França registra 216 mil vítimas de abuso sexual na Igreja Católica desde 1950, aponta relatório

Número pode passar de 300 mil se consideradas agressões cometidas por colaboradores sem cargos eclesiásticos; documento de 2.500 páginas foi entregue nesta terça-feira ao chefe da conferência episcopal francesa, que pediu perdão
Presidente da comissão, Jean-Marc Sauvé, entrega relatório de investigação sobre abusos na Igreja Católica ao chefe da Conferência dos Bispos francesa, Eric de Moulins-Beaufort Foto: THOMAS COEX / AFP
Presidente da comissão, Jean-Marc Sauvé, entrega relatório de investigação sobre abusos na Igreja Católica ao chefe da Conferência dos Bispos francesa, Eric de Moulins-Beaufort Foto: THOMAS COEX / AFP

PARIS — O relatório de uma comissão independente que investigou a conduta de integrantes da Igreja Católica na França desde a década de 1950 revelou que ao menos 216 mil crianças foram vítimas de abusos sexuais de membros do clero nos últimos 70 anos. O relatório, divulgado nesta terça-feira após dois anos e meio de investigações, aponta que o número de vítimas pode ultrapassar os 300 mil se forem consideradas agressões cometidas por colaboradores da Igreja sem cargos eclesiásticos.

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O documento de 2.500 páginas foi entregue nesta terça-feira pelo presidente da comissão, Jean-Marc Sauvé, ao chefe da Conferência dos Bispos da França (CEF, na sigla em francês), Eric de Moulins-Beaufort. De acordo com as descobertas, a Igreja mostrou "por anos, indiferença profunda, total e até cruel", protegendo-se ao invés ajudar as vítimas, em sua maioria meninos entre 10 e 13 anos.

— As consequências são muito graves. Cerca de 60% dos homens e mulheres abusados sexualmente encontram grandes problemas em sua vida sentimental ou sexual — afirmou Sauvé em entrevista coletiva.

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O número total de menores abusados pode chegar a 330 mil, constatou o relatório, se consideradas também vítimas de pessoas na esfera da Igreja, mas que não compõem seu corpo eclesiástico, como catequistas, professores de escolas religiosas e supervisores de movimentos jovens.

Estima-se que o total de abusadores fique entre 2,9 mil e 3,2 mil — dois terços deles, padres. Entre as vítimas, 80% eram meninos. Na maioria dos casos, os atos estão prescritos e os autores dos abusos já morreram, mas o relatório aponta 22 supostos crimes que ainda podem ser investigados. Todos foram encaminhados ao Ministério Público. Outros 40 casos muito antigos para serem processados, mas que envolvem pessoas que ainda estão vivas, foram encaminhados aos dirigentes da Igreja.

— Às vezes, as autoridades da Igreja não denunciavam (abusos sexuais) e até mesmo expunham as crianças a riscos ao colocá-las em contato com os abusadores. Nós consideramos que a Igreja tem uma dívida para com as vítimas — ressaltou o presidente da comissão, afirmando que os pesquisadores só constataram uma mudança de atitude nos últimos cinco anos.

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'Tristeza', diz Papa

Pouco após a divulgação das conclusões, o Vaticano informou que o Papa Francisco foi informado sobre o relatório e que sente "tristeza" diante das informações descobertas. Desde que chegou ao comando da Santa Sé, em 2013, o argentino vem tomando uma série de medidas para fazer frente ao "catastrófico" problema de abusos sexuais na Igreja — embora críticos afirmem que as iniciativas são insuficientes e lentas.

Já Moulins-Beaufort, o chefe da CEF, afirmou que todos "estão horrorizados" com as conclusões do relatório e pediu desculpas às vítimas:

— Desejo pedir perdão, perdão a cada um de vocês — disse ele, em entrevista coletiva, afirmando que a Igreja sente "vergonha" está "determinada a atuar" para fazer frente ao problema.

O relatório, intitulado "Violência sexual na Igreja Católica - França, 1950-2020", foi encomendado em novembro de 2018 pela CEF e pela Conferência dos Religiosos da França (Corref), sob pressão de associações de vítimas. Trata-se também de uma medida para tentar restaurar a confiança em uma instituição que vê suas congregações se reduzirem gradualmente. Segundo uma pesquisa de 2019 do Observatório da Laicidade, 48% dos franceses hoje se dizem católicos, contra mais de 85% nos anos 1970, e 34% não têm religião.

O objetivo do trabalho foi não só avaliar a conduta dos religiosos, mas também analisar as práticas eclesiásticas em relação ao fenômeno e recomendar medidas para fazer frente a ele. Há dias, segundo o jornal Le Monde, padres vinham alertando os fiéis de que deveriam esperar revelações particularmente chocantes.

A divulgação do relatório vem após vários escândalos ao longo dos anos, entre eles o do padre Bernard Preynat, que foi destituído no ano passado e condenado por abusar sexualmente de menores. Ele confessou ter cometido o crime contra 75 meninos por décadas e recebeu uma sentença de cinco anos de prisão.

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Recomendações

Uma das vítimas de Preynat, François Devaux, chefe do grupo de vítimas La Parole Libérée, disse que, com o relatório, "a Igreja francesa pela primeira vez está indo à raiz desse problema sistêmico". Devaux disse, no entanto, que as autoridades eclesiásticas são uma "desgraça para a Humanidade" por terem permitido que os abusos permanecessem por tanto tempo.

— Neste inferno houve abomináveis crimes em massa, mas houve uma ainda pior traição de confiança, da moral e das crianças — afirmou, acrescentando que o relatório é um ponto de virada. — Finalmente estamos dando às vítimas um reconhecimento institucional da responsabilidade da Igreja.

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De acordo com Sauvé, a maneira como a Igreja aborda temas como sexualidade, obediência e a formação religiosa criou pontos cegos que permitiram o abuso sistemático. Ele afirmou ser necessária uma reforma interna para que a instituição reconstrua a confiança na sociedade. A comissão também pede reparações financeiras que, "apesar de não serem suficientes (para que as vítimas superem o trauma), são indispensáveis".

Outras recomendações incluem conferir sistematicamente os registros criminais de qualquer funcionário da Igreja que tenha contato com crianças ou pessoas vulneráveis.

A maior parte do trabalho da comissão foi realizada a partir do depoimento de vítimas: uma convocação ficou aberta por 17 meses, recebendo 6.500 ligações ou contatos de vítimas e parentes. Em seguida, foram realizadas quase 250 longas audiências e interrogatórios de investigação. Também foram analisados arquivos da Igreja, registros da imprensa, dos Ministérios da Justiça e do Interior e de outras fontes.