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Parceria com a China não basta para salvar Rússia do cerco econômico imposto pelo Ocidente em represália à invasão da Ucrânia

Pequim parece calcular que benefícios da relação com Moscou superam riscos, mas limitações no comércio e nas finanças impedem uma compensação das perdas russas com as sanções
Presidente russo, Vladimir Putin (E), e o presidente da China, Xi Jinping, durante encontro em Pequim, antes da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno Foto: ALEXEI DRUZHININ / AFP
Presidente russo, Vladimir Putin (E), e o presidente da China, Xi Jinping, durante encontro em Pequim, antes da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno Foto: ALEXEI DRUZHININ / AFP

PEQUIM — Em 1969, a população de Pequim foi mobilizada contra uma ameaça devastadora e que parecia iminente: um ataque nuclear soviético. Convocados pelo então líder supremo, Mao Tsé-tung, milhares de voluntários se juntaram num mutirão para cavar um gigantesco bunker na capital chinesa, à espera da ofensiva de Moscou. O resultado foi um complexo de 85 quilômetros quadrados sob o centro histórico de Pequim. Além de um labirinto de túneis e compartimentos à prova de um ataque nuclear, tinha hospitais, cinemas, quadras esportivas, restaurantes e fábricas, num verdadeiro universo paralelo situado a dez metros de profundidade.

Para alívio geral, o ataque não aconteceu. A ameaça soviética levou China e Estados Unidos a se aproximarem, num gesto que está completando 50 anos . E a cidade subterrânea de Pequim virou atração turística, reduzida a uma relíquia do passado de hostilidade nas relações com Moscou que o governo chinês prefere deixar enterrada.

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Numa virada da história, hoje os dois países estão abraçados numa estreita parceria estratégica, e a China é o único país que pode oferecer abrigo à Rússia contra a pesada artilharia de sanções econômicas lançada pelos EUA e seus aliados como resposta à invasão da Ucrânia — entre elas as “opções nucleares”, como foram chamadas a exclusão de bancos russos do sistema de pagamentos internacional Swift e o bloqueio do acesso do Banco Central russo a parte de suas reservas depositadas nos Estados Unidos e nos países da União Europeia

— Duas guerras estão em andamento: a da Ucrânia e a das sanções contra a Rússia — diz a economista russa Elina Ribakova, do Instituto Internacional de Finanças, em Washington. — O apoio da China será crítico para a Rússia.

Há limites, porém, à capacidade e ao interesse de Pequim em proteger o antigo inimigo. A China pode significar um alívio contra as sanções, mas não uma solução, afirma Alicia García-Herrero, economista-chefe para a Ásia do banco de investimentos Natixis. Para ela, a ideia de que a China pode salvar a economia russa é “um exagero”. Simplesmente porque, mesmo se quisesse, Pequim não teria capacidade para preencher o vazio causado pelas sanções, seja no comércio bilateral ou nos mecanismos financeiros.

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‘Protetorado econômico’

Nas relações comerciais, que aumentaram 50% desde que a Rússia foi atingida por sanções pela anexação da Península da Crimeia, em 2014, há uma impossibilidade física para que a China desvie o gás que Moscou envia à Europa, pois não há infraestrutura de gasodutos pronta no momento para isso. E no setor financeiro, não está claro em que medida a China se arriscará a sofrer sanções secundárias dos EUA para ajudar o parceiro. Ainda que Rússia e China tenham criado seus sistemas próprios de pagamentos nos últimos anos, eles ainda funcionam de forma limitada e não são suficientes para substituir o Swift.

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Mas há um “canal direto” de liquidez que poderia ser aberto pela China. As sanções que atingiram o Banco Central da Rússia bloquearam o acesso à metade dos US$ 630 bilhões em reservas internacionais. Desse volume, 13% estão denominados em yuans, a moeda chinesa. Se o BC chinês concordar em converter esse volume para a moeda americana, estará dando à Rússia liquidez suficiente para um ano, calcula García-Herrero, o que seria uma tomada de posição politicamente significativa. O que torna difícil prever o comportamento da China é que a crise produz interesses diferentes para o país, diz ela, e alguns são contraditórios.

Por enquanto, porém, Pequim parece ter calculado que os benefícios de sua parceria estratégica com Moscou superam os custos, incluindo o de ser associado a um ato de agressão contra um país soberano. A hostilidade do Ocidente tornou o abraço inevitável, diz Chen Fengying, do Instituto de Relações Internacionais Contemporâneas. Mesmo antes da invasão, era uma relação de crescente assimetria. Agora diplomatas estrangeiros em Pequim comentam que uma das ironias desta crise é que a ambição neoimperialista de Putin poderá tornar a Rússia uma espécie de protetorado econômico da China.

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Embora favorecida por interesses econômicos complementares, principalmente o fornecimento de gás, petróleo, carvão e commodities agrícolas da Rússia para a China, a aproximação tem como maior combustível o antagonismo comum com os EUA, e o desejo de criar um contraponto à predominância americana no sistema internacional.

— Os laços econômicos não são o fundamento dessa relação. O mais importante é a dimensão ideológica e estratégica — diz Jakub Jakobowski, especialista em China do Centro de Estudos do Leste, na Polônia.

Parceria x aliança

A parceria foi reforçada no comunicado conjunto de 4 de fevereiro, divulgado em meio à festa de abertura da Olimpíada de Inverno de Pequim. O documento causou calafrios no Ocidente ao anunciar “uma nova era nas relações internacionais” , enquanto a Rússia concentrava tropas na fronteira com a Ucrânia e a China endossava as críticas de Moscou à expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para o Leste. Houve o cuidado de deixar claro que se trata de uma parceria, não uma aliança. Embora a cooperação militar venha crescendo, não há um pacto de defesa mútua como na Otan. É um casamento de conveniência, mas sem aliança.

A consolidação de uma frente formada pelas duas maiores potências autocráticas foi recebida por muitos com alarme. Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, chamou o comunicado conjunto de “manifesto revisionista” e viu nele um “ato de desafio” à ordem mundial. Em Washington, a impressão é que, ao formalizar a parceria na véspera da invasão, a China tornou mais difícil negar que o mundo vive uma “nova guerra fria”, diz Jude Blanchette, especialista em China do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

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Mais que a retórica despejada em documentos, o que importa são ações, acredita Artyom Lukin, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Extremo Leste, na cidade de Vladivostok — numa região, aliás, que já foi da China e ainda desperta fortes emoções entre nacionalistas chineses. Para Lukin, o grande teste da parceria será a medida com que Pequim ajudará Moscou a evitar o naufrágio econômico.

— A China tem interesse em que a Rússia continue sendo uma grande potência. Se a Rússia afundar, a China fica sozinha na briga com os EUA. Além disso, é bom para a China que a Rússia continue sendo uma distração para o Ocidente.

Meio cheio, meio vazio

O teste da invasão russa à Ucrânia por enquanto dá algumas indicações sobre a solidez e os limites da parceria China-Rússia. A crise mostrou uma posição ambivalente de Pequim, que se mantém fiel a sua parceria estratégica com Moscou enquanto defende o princípio da integridade territorial e se abstém nas votações na ONU que condenam a invasão da Ucrânia. É uma posição descrita como de “neutralidade pró-Moscou” pelo ex-assessor de Ásia do governo americano Evan Medeiros. O socorro econômico também seguiu direções distintas.

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Por um lado, a China levantou as restrições de importação ao trigo da Rússia, garantindo divisas num momento de volatilidade para as exportações russas. Também firmou acordos para aumentar o fornecimento de gás e petróleo da Rússia nos próximos 30 anos num valor de US$ 117 bilhões. Ao mesmo tempo, bancos estatais chineses pararam de emitir cartas de crédito para a compra de commodities da Rússia logo após a invasão, fechando o “canal direto” de liquidez.

Embora Pequim seja veemente nas críticas a sanções unilaterais (sem aprovação da ONU), no passado bancos chineses cumpriram com medidas restritivas impostas contra a Rússia, o Irã e a Coreia do Norte, para não correr o risco de sofrer retaliações e perder o acesso a transações em dólar no mercado internacional.

Mesmo com o fortalecimento da parceria estratégica entre Pequim e Moscou, o mesmo comportamento deve se repetir diante da atual bateria de sanções contra a Rússia. A assistência chinesa será “limitada”, prevê Arkady Moshes, diretor para Rússia e Europa do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais.

— A China não irá violar sanções, especialmente as impostas pelos EUA — aposta. — A recusa da China em apoiar Moscou na votação do Conselho de Segurança da ONU que condenou a invasão da Ucrânia mostra que os interesses não são tão próximos.