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Éric Zemmour, o polemista admirador de Trump que embola o campo da ultradireita na França

Apresentador de TV processado por racismo e incitação ao ódio tira votos de Marine Le Pen e traz desafio a Macron
O ensaísta e jornalista político francês Éric Zemmour em um painel em Budapeste no dia 24 de setembro Foto: ATTILA KISBENEDEK / AFP
O ensaísta e jornalista político francês Éric Zemmour em um painel em Budapeste no dia 24 de setembro Foto: ATTILA KISBENEDEK / AFP

PARIS -  A seis meses da eleição presidencial francesa, em abril de 2022, a incerteza no cenário eleitoral aumentou. As pesquisas indicavam até o momento uma nova disputa de segundo turno entre o presidente Emmanuel Macron e a candidata de extrema direita Marine Le Pen, como em 2017, com vantagem para a reeleição do primeiro. Mas a potencial candidatura do polemista de ultradireita Éric Zemmour alterou o tabuleiro político, em uma pré-campanha marcada até agora por temas caros ao campo conservador, como imigração, segurança e questões identitárias.

Na pesquisa Harris divulgada na última quarta, Macron chegaria ao segundo turno com 24% das intenções de voto, mesmo índice obtido no pleito de 2017. Zemmour, em uma dinâmica ascendente, saltou de 5,5% em junho para 17%, superando Le Pen, do partido Reunião Nacional (RN), com 15%. O candidato da direita moderada Xavier Bertrand teve 13%, à frente de Jean-Luc Mélenchon, da França Insubmissa, da esquerda radical, com 11%. A candidata socialista Anne Hidalgo, prefeita de Paris, e o ecologista Yannick Jadot alcançaram modestos 6% cada. Considerada a margem de erro, a luta pelo acesso ao segundo turno estaria embaralhada entre Le Pen, Zemmour e Bertrand.

Contrariamente a Marine Le Pen, que ao longo da última década deflagrou um processo de “desdiabolização”, suavizando o discurso extremista do partido, Zemmour intensificou sua radicalização direitista. Em suas intervenções como comentarista no canal de TV conservador CNews, em sua coluna no jornal Le Figaro ou em seu livros, ataca repetidamente a imigração e o Islã como os males maiores do “declínio francês”. Já defendeu o direito de as empresas solicitarem às agências de emprego que não lhe sejam apresentados candidatos negros ou árabes às vagas disponíveis. Mais recentemente, afirmou que, se fosse eleito presidente, proibiria no país a adoção de prenomes não franceses, como Mohammed. Processado sete vezes desde 2010 por incitação ao ódio religioso e à discriminação racial, por injúrias racistas e violência verbal, sofreu duas condenações. Três outros processos o aguardam.

Para o cientista político Jean-Yves Dormagen, da Universidade de Montpellier, Zemmour “faz pensar em Jair Bolsonaro”:

— É alguém muito à direita, que divide bastante, com posições muito radicais. Hoje, a clivagem em torno do Islã, dos estrangeiros, do controle das fronteiras e do que é identidade na França é bem mais forte do que há cinco ou dez anos. São estes temas que pautam a pré-campanha. E o sucesso de Zemmour se faz em cima desta clivagem.

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Zemmour não esconde sua admiração por Donald Trump e não se priva de copiar tiradas do ex-presidente americano. Philippe Corcuff, autor do ensaio “A grande confusão — como a extrema direita ganha a batalha das ideias”, define seu discurso como um conjunto de “bricolagens ideológicas” associando xenofobia, sexismo e homofobia, em um quadro nacionalista que “fantasia um povo culturalmente homogêneo”. O fenômeno Zemmour se beneficia do “forte declínio da clivagem esquerda/direita”, e desenha no horizonte uma possível vitória eleitoral da extrema direita, diz.

Embora não tenha oficializado sua candidatura ao Palácio do Eliseu, Zemmour sinalizou que não tardará a fazê-lo. Por enquanto, aproveita a ampla cobertura de mídia que tem recebido na turnê nacional de lançamento de seu novo livro, “A França não disse sua última palavra”.

Dilema de Marine Le Pen

Para Dormagen, a provável candidatura de Zemour e seu atual desempenho nas pesquisas “reabrem completamente o jogo e redistribuem as cartas” da eleição presidencial:

— Hoje, Marine Le Pen não tem mais assegurada sua presença no segundo turno, o que aumenta incertezas para Macron. A configuração mais complicada para ele seria enfrentar um candidato da direita tradicional, como Xavier Bertrand. Sua base eleitoral seria reduzida, pois teria menos votos da direita, e correria o risco de uma forte abstenção dos eleitores da esquerda.

Em sua ascensão nas pesquisas, Zemmour rouba votos dos eleitores de Le Pen e também da direita republicana. O próprio Jean-Marie Le Pen, cofundador da Frente Nacional (atual RN) e hoje crítico da filha Marine, declarou que se o polemista for o “candidato mais bem colocado do campo nacionalista”, certamente receberá seu apoio.

O partido de Marine Le Pen teve resultados decepcionantes nas eleições municipais e regionais deste ano, e sua líder se encontra hoje, diz Dormagen, em uma armadilha:

— Ela desmobilizou seu eleitorado, deixando um espaço vago. Sua estratégia de desdiabolização acabou por ter efeitos negativos na dinâmica de campanha. E uma parte de seus eleitores está passando para o lado de Éric Zemmour.

Para Mathias Bernard, especialista em História Contemporânea da Universidade Clermont Auvergne, a maior dificuldade para Zemmour é o fato de não ser um “profissional da política”:

— É sabido que não é fácil encarar uma eleição presidencial quando não se tem um aparelho político, militantes, financiamentos. Não é simples para uma personalidade transformar um potencial eleitoral em votos

Para Macron, os obstáculos são, na avaliação de Bernard, de outro teor. A equação política de 2017 não será a mesma em 2022, ressalta.

Macron foi favorecido em 2017 pelo desejo de remoção do poder dos velhos políticos. Ele encarnava algo novo, em termos geracionais (é o presidente mais jovem da V República) e de personalidade. Três anos antes da eleição, era quase desconhecido. Hoje não é mais novidade, e o mesmo desejo pode se voltar contra ele.

Bernard assinala que, em 2017,o centro de gravidade do eleitorado de Macron se situava na centro-esquerda. Já a evolução de seu quinquênio, resume, foi marcada por uma “direitização política de governo e de seu corpo eleitoral”.

— A estratégia de Macron é de recuperar na direita o que perdeu na centro-esquerda. Ele não poderá fazer a mesma campanha de 2017. Outro dado é o abstencionismo. As eleições intermediárias ocorridas desde 2017 registraram índices inéditos de abstenção na França. A questão é saber se o pleito presidencial será poupado ou não dessa onda. Isso poderá desequilibrar. As incertezas ainda são muitas.

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Ponto a favor de Macron

A favor de Macron, Dormagen cita um alto índice de aprovação, de 46%, muito superior à média para um presidente em fim de mandato. Na pesquisa Harris, Macron se reelegeria no segundo turno contra Le Pen (53% a 47%) e Zemmour (55% a 45%). Para o analista, os eleitores que o elegeram em 2017 e que hoje continuam a apoiá-lo são conservadores favoráveis ao status-quo.

— São eleitores pró-sistema. Sondagens e estudos revelam que estão satisfeitos com Macron, com a maneira como governou o país e geriu a crise sanitária da Covid-19. Deste ponto vista, ele permanece como o candidato mais bem colocado neste eleitorado. Derrotá-lo será complicado, mas não impossível. Em seis meses isso poderá mudar.