Mundo
PUBLICIDADE
Por — São Paulo

Repete-se amplamente que a guerra de Israel é contra o Hamas. Não é o que indica a punição coletiva por conta do ataque terrorista de 7 de outubro. O massacre do povo palestino de Gaza provavelmente fracassará em eliminar o Hamas. O caminho seguido por Israel não levará à paz, palavra esquecida nos discursos das autoridades.

O trauma criado alimenta o apoio e o engajamento de jovens nas forças de resistência e no terrorismo. Em Gaza, esse risco é aumentado pela destruição das estruturas familiares e do tecido social.

Esse quadro é sem precedentes, segundo a socióloga palestina Honaida Ghanim, ainda pior que a Nakba, expulsão de mais de 700 mil palestinos das terras onde moravam para acomodar a imigração de judeus quando da formação do Estado de Israel. Para ela, ao menos “no exílio, a estrutura de aldeia e a estrutura de família ampliada foram mantidas”.

As mortes na Faixa de Gaza só aumentam. Somam quase 25 mil, mais de 1% da população. Alguns desqualificam a informação por vir do Hamas.

O número, contudo, é verossímil diante da grande potência das forças de Israel e da elevada densidade populacional (6,5 mil hab./km², número que se situa entre as taxas do Rio de Janeiro e do Recife), sem contar o confinamento da população civil a menos de um terço do território.

Faria diferença, porém, se o número verdadeiro de mortes causadas por Israel fosse metade do divulgado? O horror do dia 7 de outubro foi acaso atenuado quando Israel reduziu a contagem das mortes de 1,4 mil para 1,2 mil, ou com a suspeita de que parte foi causada pelo próprio Exército israelense, como discutido por Dorrit Harazim, ou quando se esclareceu que não havia 40 bebês assassinados?

O governo de Israel responsabiliza o Hamas pela morte de civis, acusando-o de usá-los como escudos humanos. Esse fato recomendaria ainda mais cautela, com ataques tópicos e localizados, e não a ofensiva indiscriminada em todo o território.

Apesar da maior intensidade, a investida não destoa da política beligerante de Israel das últimas décadas. O afastamento de Israel de vozes moderadas não é de hoje — o primeiro-ministro que tentou construir pontes foi assassinado.

Analistas dentro e fora de Israel reconhecem que o governo de Benjamin Netanyahu favoreceu o domínio do Hamas na Faixa de Gaza e enfraqueceu a Autoridade Nacional Palestina (ANP). Assim, alimentou a guerra para se manter no poder e afastou a solução de dois Estados.

O plano terrorista do Hamas era conhecido por autoridades israelenses há mais de um ano, segundo o New York Times. Além disso, houve alertas de movimentações na Faixa de Gaza que indicavam ataque iminente do grupo contra Israel. É necessário o escrutínio sobre a inação de Israel.

É fundamental evitar mais derramamento de sangue, cuidar dos sobreviventes, administrar o dramático pós-guerra e tratar da situação dos palestinos da Cisjordânia. Esses objetivos requerem, porém, uma avaliação honesta da ação das forças israelenses também sob a perspectiva dos palestinos.

O governo da África do Sul apresentou uma queixa contra Israel na Corte Internacional de Justiça, acusando-o de genocídio contra os palestinos em Gaza. O apoio daquele país à causa palestina remonta ao Nobel da Paz de 1993, Nelson Mandela, que já foi considerado terrorista. Ele comparava a situação dos palestinos nos territórios ocupados ao regime de apartheid.

Segundo convenção da ONU de 1948, ratificada no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) em 1998, “entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção (grifo meu) de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasione a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; [e] transferência forçada de menores do grupo para outro”.

Para caracterizar o genocídio, deve ser comprovado, portanto, que determinadas ações tiveram a intenção de destruir o grupo. Não é tarefa fácil, até porque o perpetrador, consciente da punição, busca ocultar os danos produzidos. Dito isso, nem mesmo discussões semânticas mais cuidadosas conseguirão empanar o desastre a que se assiste.

Os números deveriam falar por si: dos quase 25 mil mortos, 70% são mulheres e menores; há mais de 60 mil feridos e outros tantos desaparecidos; cerca de 70% das casas foram destruídas até dezembro; e quase 90% da população foi deslocada.

Não há área segura para os palestinos se refugiarem. As notificações de ataques feitas por Israel são falhas, e áreas supostamente seguras foram atacadas. A Human Rights Watch acusa Israel de usar fósforo branco em áreas densamente povoadas.

A crise humanitária está instalada, com a população sofrendo todo tipo de privação — água, comida, condições de higiene e remédios. No dia 2 de janeiro, a Organização Mundial da Saúde anunciou 425 mil casos (registrados) de doenças infecciosas.

A destruição é disseminada: de hospitais (apenas 8 dos 36 aceitam pacientes), de prédios públicos e de infraestrutura civil, incluindo tratamento de água, rede de esgoto e rede elétrica.

A relatora especial da ONU sobre os Direitos Humanos das Pessoas Deslocadas Internamente, Paula Gaviria Betancur, afirmou que as ações das forças de Israel indicam a intenção de “deportação em massa da população civil (...), frustrando qualquer perspectiva de os deslocados regressarem às suas casas”. Ela acusa Israel de não cumprir a lei internacional de garantir a segurança dos deslocados e seu acesso à ajuda humanitária.

Quanto às intenções de Israel, houve muitas declarações de autoridades contra os civis de Gaza que, certamente, influenciam as tropas. Esse ponto é importante porque, pela Convenção de Genebra, serão punidos não só os atos de genocídio, mas também a “tentativa de genocídio” e a “incitação direta e pública a cometer o genocídio”.

O presidente Isaac Herzog afirmou: “É uma nação inteira lá fora que é responsável. Não é verdade essa retórica de civis que não estão cientes e não envolvidos. (...) Eles poderiam ter se levantado, poderiam ter lutado contra aquele regime maligno que tomou Gaza.”

O comandante de atividades governamentais nos territórios, general Ghassan Alian, fez um pronunciamento em árabe dirigido à população de Gaza: “Animais têm de ser tratados como tais. Não haverá eletricidade nem água, haverá apenas destruição.”

O ministro da Defesa, Yoav Gallant, afirmou que “não haverá eletricidade, comida, combustível — tudo está sendo bloqueado. Estamos lutando contra os animais humanos e vamos agir em conformidade”. “Gaza não voltará ao que era antes. (...) Usaremos todas as medidas à nossa disposição”, disse.

O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, afirmou que, “quando dizemos que o Hamas deve ser destruído, também significa aqueles que cantam, aqueles que apoiam e aqueles que distribuem doce — todos eles são terroristas e também devem ser destruídos”.

O ministro de Energia e Infraestrutura, Israel Katz, postou em rede social: “Toda a população civil em Gaza é ordenada a sair imediatamente. (...) Eles não receberão uma gota de água ou uma única bateria até que deixem o mundo.”

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, defende “100 mil ou 200 mil árabes em Gaza, e não 2 milhões”.

Diante de tantos pronunciamentos, a procuradora-geral de Israel, Gali Baharav-Miara, em meados de novembro, emitiu nota com o alerta de que “declarações que apelam (...) a danos intencionais a cidadãos não envolvidos (...) podem constituir crimes, incluindo a incitação”.

Há oposição às autoridades dentro de Israel. Um exemplo é o congressista Ofer Cassif, que deu apoio à petição da África do Sul, mas agora sofre uma moção de 70 integrantes da Knesset (Parlamento israelense) para sua expulsão. Em sua defesa, Cassif afirmou: “Meu dever constitucional é para com a sociedade israelense e todos os seus residentes, não para com um governo e os membros da sua coalizão que apelam à limpeza étnica e até mesmo ao genocídio real. São eles que prejudicam o país e seu povo.”

Outras tantas são sufocadas. A polícia de Tel Aviv proibiu um protesto judaico-palestino pela paz, sob a bandeira “Só a paz trará segurança”, programado para o dia 11 de janeiro.

Há também dificuldades para identificar crimes de guerra. O TPI definiu como crime de guerra o uso da fome como meio de ataque em conflitos. No entanto, um ponto de disputa é como provar que a falta de alimentos, água e medicamentos decorre de políticas intencionais, não sendo simplesmente resultado inevitável da guerra. Uma das interpretações é haver prova de intenção mesmo que nunca seja declarada explicitamente.

Praticamente toda a população está em risco iminente de fome. Dos 2,2 milhões nessa situação, 378 mil sofrem com a falta extrema de alimentos (fase 5 no critério da ONU), e 939 mil estão em nível de emergência (fase 4). Essa realidade, ainda que agravada perigosamente, não é nova. Mais de 68% das pessoas estavam em situação de insegurança alimentar, grave ou moderada, antes do 7 de outubro.

A restrição ao fluxo de mercadorias e pessoas é fator central nessa realidade. Desde 2007, dois anos após a retirada de Israel de Gaza, as restrições ao fluxo de mercadorias aumentaram. Portos foram fechados e proibiu-se a importação de quase tudo que permitisse aos habitantes viver acima do nível de subsistência.

Em 2009, foi revelado um documento denominado “Red Lines”, elaborado pela Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios (COGAT), estabelecendo os requisitos nutricionais mínimos para sustentar os moradores da região.

A rede de túneis que liga Gaza ao Egito foi construída para contornar o bloqueio de Israel, sendo ampliada desde 2007. Passa de tudo pelos túneis: alimentos, remédios, material de construção, combustível e, também, armas. O controle dos túneis é um elemento central no poder do Hamas.

Desde 1991, é proibido o livre movimento de palestinos entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Passou a ser necessária autorização do governo israelense. As autoridades impedem a maior parte da população de cruzar a Passagem de Erez — único acesso para Israel e, de lá, para a Cisjordânia ou para o exterior. A saída de palestinos durante os primeiros oito meses de 2023 foi de 1.653 pessoas. Apesar do aumento em relação aos anos anteriores, em grande medida em virtude de autorizações de trabalho, o número não chega a 7% da média diária de mais de 24 mil antes da Segunda Intifada (2000-2005).

Amira Hass, filha de dois sobreviventes do Holocausto, fez a seguinte reflexão: “A Faixa de Gaza vem sendo gradualmente apagada, com suas famílias, seu povo, suas crianças, seus sorrisos e risadas. (...) O Exército de Israel está apagando as ruas de Gaza e os becos dos campos de refugiados. Está apagando os passeios na praia de Gaza, aldeias e suas inesperadas, mas existentes, áreas agrícolas. Está apagando suas instituições culturais, universidades e sítios arqueológicos. (...) Negamos a História palestina e o enraizamento da existência palestina entre o rio e o mar.”

Outro capítulo da crise é a rápida piora nas condições de vida na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, onde a população vive há décadas em regime comparável ao apartheid, segundo a Human Rights Watch e a Anistia Internacional. Mais recentemente, Tamir Pardo, ex-chefe do Mossad (Instituto de Inteligência e Operações Especiais de Israel) fez a mesma analogia.

Os palestinos sofrem com restrições à mobilidade. Isso sufoca a atividade econômica, afeta a provisão de alimentos e remédios e o acesso de ambulâncias, além de dividir famílias — e Israel controla o fornecimento de água na região. São muros, postos de controle e bloqueios, totalizando 645 obstáculos físicos em 2022, numa área similar à do Distrito Federal do Brasil. Isso sem contar a proibição de acessar praticamente 30% do território. O recrudescimento dos bloqueios desde 7 de outubro isolou a população ainda mais em suas aldeias.

Tem havido o uso desnecessário e desproporcional da força por Israel desde 7 de outubro, com escalada de mortes também nesses territórios (291 até 27 de dezembro, sendo 79 menores, totalizando cerca de 500 em 2023, ante 151 em 2022) e aumento das prisões em massa arbitrárias (4.785 no período, incluindo menores e jornalistas). Em janeiro deste ano, são 8,6 mil presos de segurança, ante 4,7 mil há um ano — a cifra não inclui cerca de 4 mil trabalhadores da Faixa de Gaza que estavam legalmente em Israel e foram detidos depois do 7 de outubro.

As leis são diferentes para os palestinos na Cisjordânia, que são processados e julgados pela corte militar, sem garantia regular de defesa. Quase a totalidade, quando vai a julgamento, é condenada.

Houve, também, aumento expressivo nos casos de colonos israelenses — ocupantes em assentamentos ilegais —, armados, matando palestinos, destruindo a fonte de renda de muitos (plantações de oliva) e causando deslocamento em massa de comunidades. Foram 367 ataques e 1.208 deslocamentos forçados. Vale citar o sistemático aumento no número de assentamentos de colonos, contrariando os Acordos de Oslo, de 1993.

Assim, a ideia de que a ANP não tem credibilidade junto aos palestinos em razão da corrupção nem de longe toca num fator central: a impossibilidade de libertar os palestinos da mão forte de Israel.

O historiador israelense Moshe Zimmerman considera o ataque do Hamas um “pogrom contra os judeus, no Estado judeu”, e isso representa o fracasso “tanto do Estado sionista quanto do sionismo”, cujo objetivo era defendê-los. Ele associa esse resultado ao “processo de nacionalismo, racismo e etnocentrismo” pelo qual passa a “nacionalidade judaica”.

Os moderados não devem esmorecer. Que sejam construídas pontes entre povos que já viveram em paz. Não se deve confundir o poder de mando de plantão, de cada lado, com a sociedade em geral.

Mais recente Próxima Corpo embalsamado de Lênin, morto há 100 anos, sobrevive ao custo anual de US$ 200 mil