Mundo

Especialistas condenam 'injeção de desinfetante' sugerida por Trump para Covid-19; presidente diz que foi 'sarcástico'

Produtos são potencialmente fatais, alertam médicos; republicano afirmou que comentário foi uma resposta a questionamentos da imprensa sobre estudos apresentados pela Casa Branca
Presidente Donald Trump, durante entrevista coletiva na Casa Branca Foto: MANDEL NGAN / AFP / 23-04-2020
Presidente Donald Trump, durante entrevista coletiva na Casa Branca Foto: MANDEL NGAN / AFP / 23-04-2020

WASHINGTON – Especialistas, empresas químicas e organizações internacionais condenaram declarações  "perigosas" e "irresponsáveis" feitas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump , de que injeções com desinfetantes ou exposição a raios ultravioleta poderiam ser tratamentos eficazes contra a Covid-19 . As práticas podem não só causar sérios danos à saúde, mas são potencialmente fatais, disseram. O presidente, por sua vez, declarou nesta sexta que estava "sendo sarcástico" .

Coronavírus : Perguntas e respostas sobre a Covid-19

Em sua entrevista coletiva com a força-tarefa da Casa Branca na quinta à noite, Trump discutiu novas pesquisas que o governo vem realizando sobre como o vírus reage a diferentes temperaturas, climas e tipos de superfícies. Os estudos mostram que desinfetantes matam rapidamente o vírus no ar ou no ambiente externo, mas o presidente foi mais longe, sugerindo que fosse estudada se sua utilização poderia ser eficaz dentro do corpo.

— Eu vejo que o desinfetante mata [o vírus] em um minuto. Um minuto! — disse o presidente. — E há algum jeito de fazermos alguma coisa, uma injeção ou quase uma limpeza? Porque, veja, ele [o coronavírus] chega nos pulmões e causa grande destruição, então seria interessante checar isso.

Solidariedade: Imigrantes brasileiros nos EUA formam redes de proteção durante pandemia da Covid-19

A sugestão do presidente foi rápida e amplamente criticada por especialistas, que alertaram para a prática ser potencialmente fatal. Para o professor de Medicina da Universidade de East Anglia, Paul Hunter, “você até pode não morrer de Covid-19” após ter o desinfetante inserido em seu corpo, “porque você já vai estar morto pela injeção”.

Entrevista : China merece críticas por falta de transparência, mas Trump busca ocultar próprios erros, afirma Matias Spektor

“É incompreensível para mim que um idiota desses ocupe o maior cargo do governo americano e que existam pessoas suficientemente estúpidas para acharem que isto está ok. Não acredito que em 2020 eu precise alertar qualquer um que escute o presidente que uma injeção de desinfetante pode te matar”, disse em seu Twitter Walter Shaub, que dirigiu o Escritório de Ética Governamental da Casa Branca durante o governo de Barack Obama e nos primeiros meses do mandato de Trump.

Contexto: Pandemia eleva temor de Guerra Fria entre China e Estados Unidos

Ao canal NBC News, o pneumologista Vin Gupta disse que a noção de “ingerir ou injetar” qualquer tipo de produto de limpeza no corpo é “irresponsável e perigosa”. Empresas produtoras de materiais desinfetantes também repudiaram as declarações do presidente. A Reckitt Benckiser, que produz Lysol e Dettol, disse que “sob nenhuma circunstância nossos produtos devem ser administrados no corpo humano”.

Isolamento : Trump quer retomada da economia dos EUA em três etapas; sete estados prolongam quarentena contra novo coronavírus

Nesta sexta-feira, ao ser questionado por repórteres na Casa Branca sobre os comentários, Trump disse que estava "sendo sarcástico".

— Eu estava perguntando algo, de forma sarcástica, a repórteres como você, pra ver o que acontece. Desinfetante assim nas mãos  [esfrega ambas] pode funcionar. Eu estava perguntando ao senhor que estava lá ontem, Bill, porque quando dizem que algo dura por cinco ou seis horas, ou três ou quatro horas, quando o sol está lá fora e quando usamos desinfetante isso (o vírus) vai embora em menos de um minuto, vocês ouviram isso ontem. Mas eu estava perguntando algo de forma bem sarcástica aos repórteres que estavam lá ontem sobre desinfetantes, eles matam o vírus nas mãos.

Mais cedo, a Casa Branca havia acusado a imprensa de descontextualizar as declarações do presidente:

— O presidente declarou em inúmeras ocasiões que os americanos devem consultar os médicos no que diz respeito aos tratamentos contra o coronavírus, ponto no qual insistiu em sua entrevista coletiva na quinta-feira — disse Kayleigh McEnany, porta-voz do governo americano. — Deixem que a mídia vai tirar as declarações do presidente de contexto e noticiá-las com manchetes negativas.

Raios UV

A pesquisa à qual Trump se referia indica que o vírus, quando presente em gotículas de saliva expelidas por pessoas contaminadas, morre em cinco minutos após a aplicação de desinfetantes. O isopropanol agiria ainda mais rápido, em cerca de 30 segundos. O estudo mostrou ainda que a luz solar seria eficiente para matar o vírus, algo que levou o presidente a sugerir a exposição do interior do corpo a raios ultravioletas como um tratamento para a Covid-19.

— Supondo que nós levemos a luz para dentro do corpo, o que pode ser feito pela pele ou por outra maneira. E eu acho que você [Deborah Birx, médica coordenadora da força-tarefa de combate ao coronavírus] disse que isso ainda não foi checado, mas vai ser. Eu não sou médico. Mas eu sou, tipo, uma pessoa que tem boas sacadas.

'O show de Trump': Como os briefings sobre a Covid-19 se tornaram atos de campanha

O presidente, em seguida, perguntou a Birx se ela já tinha ouvido algo similar a usar calor ou luz frente à doença:

— Não como um tratamento — disse a médica, que não comentou as declarações de Trump sobre os desinfetantes. — Quero dizer, certamente a febre é uma coisa boa. Quando você tem febre, isso ajuda seu corpo a responder. Mas eu nunca vi calor ou luz.

Tal como os desinfetantes, há anos especialistas alertam para os perigos de se expôr a lâmpadas ou raios ultravioletas, seja na  parte interna ou externa de seu corpo. Ao longo da crise, o presidente vem depositando suas expectativas em uma série de métodos não comprovados, desde a luz solar até a coquetéis de drogas como a hidroxicloroquina — medicamento que o presidente Jair Bolsonaro, sem comprovação, também promove. No mês passado, um homem morreu e sua mulher foi hospitalizada após ingerirem um componente químico presente da hidroxicloroquina.