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'Esportokratura': como Vladimir Putin promove imagem de esportista com objetivos políticos dentro e fora da Rússia

Para pesquisador francês Lukas Aubin, que cunhou o termo, culto ao corpo exaltado pelo líder russo ajudou na consolidação de sua imagem, que hoje se confunde com a do próprio país
Vladimir Putin, presidente da Rússia, cavalga nos arredores da cidade de Kyzyl, no Sul da Sibéria, em 2009 Foto: Alexsey Druginyn / AFP
Vladimir Putin, presidente da Rússia, cavalga nos arredores da cidade de Kyzyl, no Sul da Sibéria, em 2009 Foto: Alexsey Druginyn / AFP

LONDRES — O presidente da Rússia, Vladimir Putin, já foi chamado de tudo nesta vida. Ditador, autocrata, espião e mafioso. Agora, soma-se a essa coleção de rótulos um talvez menos pejorativo: “esportokrata”. O líder russo seria o dirigente — e maior praticante — da “esportokratura”, um sistema híbrido e único, criado a sua imagem e semelhança.

Mistura das palavras “esporte”, “kratos” (da mitologia grega, poder) e “nomenklatura” (expressão que se refere à elite soviética), o neologismo criado pelo francês Lukas Aubin descreve a máquina que fez do esporte uma ferramenta de poder na Rússia contemporânea, e que tem em Putin sua figura central. É a partir dela que o governo estaria construindo uma narrativa para a reinvenção do maior país do mundo nestes 30 anos que se seguiram ao colapso da URSS.

— Um sistema político-econômico-esportivo para organizar a população, estimular o patriotismo, perenizar o exercício do poder e permitir que o país exista na cena internacional de maneira positiva, ou simplesmente exista — disse Aubin ao GLOBO.

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Especialista em geopolítica da Rússia e do esporte da Universidade Paris-Nanterre, ele lançou este ano o livro “La Sportokratura sous Vladimir Poutine” (“A Esportokratura sob Vladimir Putin”, em tradução livre). A ideia lhe ocorreu em uma cabana de madeira à beira do Lago Baikal, na Sibéria, quando de uma de suas muitas viagens à Rússia. Ali, se deu conta de que o culto ao corpo e à imagem de Putin — sempre exibido praticando com desenvoltura judô, sambo (arte marcial russa), hóquei e tantos outros esportes — não era ao acaso. Era estratégia deliberada de construção da marca Putin, que hoje se confunde com a nova Rússia.

Quem não se lembra das imagens do presidente todo-poderoso no jogo de gala de hóquei em maio de 2019 marcando nada menos do que oito dos 14 gols de sua equipe (vencedora) na partida?

— Um homem forte, saudável. A antítese de Boris Yeltsin, que marca um período de caos dos anos 1990 no imaginário coletivo, de crise econômica e ideológica — afirma Aubin.

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Para o líder russo, segundo o autor, mais do que a prática de exercícios, o esporte é maneira de se apropriar e responder à ideia do mito nacional da “potência russa milenar depositária e guardiã de valores tradicionais”. Transformou sua imagem em uma espécie de arquétipo do novo homem russo. Fez com que sua figura deixasse de ser a de um simples presidente. “O povo russo foi oprimido pelo comunismo e destruído pelo capitalismo? É preciso reerguê-lo fisicamente”, escreve. Aliados próximos de Putin e governadores, escolhidos a dedo — e cada vez mais jovens — glorificam o esporte na prática e no discurso. “A geração de Putin dá lugar à geração Putin”, destaca.

Políticos, atletas e oligarcas

O sistema replica o caráter vertical e autoritário do regime soviético, com pitadas de capitalismo e liberalismo. Usa influência e recursos dos oligarcas, que têm negócios no mundo inteiro, em torno de um objetivo comum. A partir dessa engrenagem, o esporte seria controlado por três categorias. Os políticos liderados por Putin, que se encarregam da organização do sistema estatal; os oligarcas, que investem no meio esportivo, entre clubes, infraestrutura e federações, para ressuscitar o segmento abandonado desde o fim da URSS; e os atletas de alto nível, com seu valor patriótico, modelos de inspiração.

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A estratégia foi bem sucedida em boa parte do tempo. Internamente, a mutação física da elite estimulou o orgulho nacional e foi absorvida pela população. Putin é a representação da nação. Ao controlar o próprio corpo (atleta, não bebe, não fuma), prova ser capaz de controlar o país. Mostrar força é respeitar a identidade. Esta terá sido uma das principais razões para a queda em indicadores sempre trágicos de alcoolismo e tabagismo na Rússia, segundo Aubin. Aqueles que praticam esporte passaram de 20% a 40% da população entre 2000 e 2020.

— Não é proselitismo governamental. São números da Organização Mundial da Saúde (OMS) — disse.

O início da pandemia da Covid-19 reforçou o poder politico do esporte. As equipes de futebol Zenith São Petersburgo e Gazprom ofereceram em março duas doses do imunizante Sputnik V aos torcedores que assistissem a uma de suas partidas. Atletas encheram as redes sociais com dicas de como treinar em casa.

Para fora, a “esportokratura” permitiria a criação de uma nova imagem positiva, de força global. Era a Rússia explorando seu soft power partindo da narrativa do sport power . O país não mediu esforços ao investir na realização de dois dos três maiores eventos esportivos do planeta nos anos recentes. Seu grande renascimento foi nos Jogos de Inverno de Sochi, em 2014, quando a tocha olímpica ganhou formato de pena da Fênix.

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Mas a “esportokratura” tem suas fragilidades. A crise da Ucrânia, que acabou na anexação da Crimeia pelos russos, ofuscou os jogos. Em 2018, isolada e sob sanções, a Rússia realiza a Copa do Mundo. Foi uma festa bem sucedida que mostrou uma Rússia aberta como nunca. Porém, lembra Aubin, fortalecida pela experiência ultraliberal, a população se voltou contra o poder central em manifestações contra a reforma da previdência.

Guerra fria no esporte

O escândalo do doping também evidencia as vulnerabilidades da “esportokratura”. Em 2020, a equipe russa foi suspensa por quatro anos das Olimpíadas. Um banho de água fria para os “esportokratas”. Ao mesmo tempo, segundo Aubin, revela que a Guerra Fria não terminou. Para a “esportokratura”, o doping na Rússia está dentro da média mundial. Para os americanos, é um sistema de dopagem de Estado pilotado pelo Kremlin.

— É a nova guerra fria do esporte, com novos códigos.

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Aubin afirma que o projeto de “Estratégia do desenvolvimento da cultura física e de esportes da Federação da Rússia até 2030” oferece perspectivas sobretudo políticas para o futuro do esporte no país. A ideia é não perder de vista o que considera a “politização do esporte na cena internacional”. Para isso, o Kremlin pretende intensificar a cooperação esportiva junto a países em desenvolvimento. Espera, assim, mudar o equilíbrio nas instituições internacionais de esporte consideradas pró-americanas e pró-ocidentais.

Outra ameaça ao futuro da “esportokratura” está nos riscos de se criar uma marca registrada em cima de uma pessoa. Legalmente, Putin pode continuar onde está até 2036, quando terá 84 anos. Já há quem o chame nas redes sociais de “dedushka Putin” (vovô Putin). Sem um nome claro para a sucessão, a Rússia é charada difícil de ser decifrada por especialistas.

— É o grande paradoxo da Rússia contemporânea; Putin é sua maior força e principal fraqueza. O dia em que ele ou seu corpo falharem, o risco de o país falhar também é incrível. A Rússia sem Putin parece uma país em pleno caos.